domingo, 7 de julho de 2013

O Último Dia do Inverno



"Vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele."
                                                                                                                                       -Victor Hugo



     Abriu as cortinas da sala de estar. Manhã de inverno, frio impiedoso lá fora - e dentro de si também. A ausência do seu amor agravava as baixas temperaturas, estava congelando lentamente. Talvez por isso não conseguisse mais derramar lágrimas: provavelmente já haviam se solidificado em algum lugar. Um mês, enfim, desde a partida do seu mais verdadeiro e intenso amor. Partida esta para um destino incerto, e sem qualquer possibilidade de retorno. Foi com a eterna despedida que seu inverno começou.
      Não mais sentia os raios solares ao abrir as cortinas; não mais ouvia a doce e singela orquestra ensaiada pelos pássaros todas as manhãs. Aquela casa nunca fora tão grande; o silêncio fazia eco em todos os cômodos, a cada dia mais vazios e escuros. Não tiveram filhos – não compartilhava desse desejo. Mas agora compreendia o receio do seu amor: não ter alguém para lhes fazer companhia em seus últimos dias. Teimou sempre, enfatizando que não tinha paciência para cuidar de crianças, e agora se via só, sem ter a quem deixar todo o patrimônio que construíram e as experiências que viveram. Tomou o pouco de coragem que lhe restava e rumou para o banheiro, a passos arrastados.
      Olhou-se no espelho e se espantou com o que viu: um rosto desfigurado pelo tempo e pela solidão. Rugas profundas denunciavam a idade. Teve rápidas lembranças de sua juventude, agora muito distante. Recordou-se de quando se juntava ao seu amor em banhos ousados e demorados, naquele mesmo banheiro. Entretanto, não mais se reconhecia naquele corpo. Tocou o espelho, tencionando sentir a própria pele no reflexo que se apresentava e acariciar aquele rosto digno de pena. Frustrada a sua tentativa, conformou-se e seguiu para o quarto.
      Contemplou a cama de casal, uma imensidão para apenas um corpo. Lembrou-se do livro preferido do seu amor, foi até o armário, abriu uma das gavetas e o retirou, muito empoeirado. Marcando uma das páginas estava a rosa que outrora lhe dera, seca como a própria pele. Mais à frente, noutra página, um papel dobrado, já amarelo: uma partitura – a “Moonlight Sonata”, de Beethoven. Era a música que seu amor costumava tocar quando precisava relaxar. Tomou para si a partitura e decidiu voltar para a sala.
      Aproximou-se do piano, sentou-se, posicionou a partitura, sentiu o teclado. Suspirou profundamente e então tentou reproduzir a melodia que seu amor costumava lhes proporcionar. Outra tentativa em vão: seus dedos, agora trêmulos, não dispunham da destreza necessária. Triste, reconheceu que o melhor a fazer era voltar para a cama. Não sentia fome, não sentia dores, nada sentia. Nada além de uma saudade devoradora, cruel, que o inverno e a solidão potencializavam.
      Agora na cama, olhou fixamente para o teto do quarto. Estava completamente só. Melhor assim, não notariam sua ausência. Poderia partir em busca do abraço que tanto lhe fazia falta sem causar sofrimento a outrem. Fechou as pálpebras. Depois de todos aqueles dias, foi a única vez em que uma lágrima tímida brotou de seus olhos. Repentinamente, começou a sentir o perfume do seu amor. Aquele doce perfume era inconfundível. Mesmo sem abrir os olhos, tinha certeza de que estava ali, cada vez mais perto, e não conteve o sorriso. Seu amor tinha vindo ao seu encontro. Rezou muito por isso, e finalmente poderia se reencontrar com quem mais lhe importava.
     Sem qualquer receio, deixou que o perfume guiasse sua mente. Sentiu o corpo leve, cada vez mais leve... até não mais senti-lo. Partiu, enfim, sem se levantar, com uma expressão plenamente serena e um leve sorriso no rosto; porque sabia que encontraria seu amor. Não sabia como, sequer imaginava onde, mas encontraria. Neste exato momento, talvez, já estejam se abraçando bem longe dali.


12 comentários:

  1. Porque em suas palavras, me encontro e reencontro sentimentos, tão meus mais que vejo, também são seus. Esperar que o destino um dia nos torne mais perto, talvez seja esperar muito. Mas vale a pena, aguardar pelo poeta...

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    1. Não sou excessivamente curioso, mas esses comentários em anonimato deixam uma aura de mistério muito intrigante. Uma pena não haver a opção "curtir" por aqui, haha! De qualquer forma, fica o meu "muito obrigado"! ^^

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  2. Complicado dizer a um escritor dizer que se não possui palavras para descrever como é lindo seu dom e como ele faz bem. Orgulho, somente isso - bom, não somente, em verdade... - sinto. Obrigado, por cada letra daqui e doutros lugares.

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    1. Eu que fico muito orgulhoso pela sua amizade e pelo apoio de sempre, Carlos Eduardo! Ademais, se tem alguém que precisa agradecer, sou eu - muito obrigado, por tudo, inclusive pela leitura e o comentário, sempre muito generoso!

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  3. Nossa, me perdoe a indiscrição, mas, não o conhecia até você compartilhar seu texto num grupo do Facebook. Gostei muito da sua escrita e da forma como você conduz o texto. Me aguçou a vontade de ler os outros. Fico no aguardo de seu próximo devaneio na ponta do lápis. Parabéns.

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    1. Indiscrição? De forma alguma, Wagner. Agradeço por tirar um tempo e vir aqui ler e comentar meu texto. Há alguns outros já postados, fique à vontade para conhecê-los, e seja bem-vindo! Obrigado (:

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  4. Caro, conheci sua produção por meio do meu melhor amigo. Passei a apreciar seus textos e posso dizer que já sou seu fã rsrs. Indescritivelmente, sinto-me invadido, completado, nem sei como descrever, mas também não quero. O importante é o que sinto. Obrigado pelo alento que os seus devaneios me proporcionam. Isto sim é talento.

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    1. Os agradecimentos são todos meus, Samuel! Bom saber que há pessoas apreciando o que a gente faz com carinho; é deveras recompensador ver que interagem com o que está escrito. Sem falsa modéstia, não sei se é necessariamente um talento, mas é algo que me faz plenamente realizado e, portanto, muito agradável para mim. Esteja à vontade para ler e comentar, e muito obrigado!

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  5. Teu texto é claro e me deu a chance de nomear os personagens.Meus nomes em tuas palavras, e posso dizer que me satisfez a vontade enquanto navegava em tua escrita. Levou-me longe e me trouxe á casa de volta. Encantada. Parabéns.

    Lu. Franzin

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    1. Uma das intenções do texto é justamente essa, Lu Franzin... permitir que o leitor também participe na criação da narrativa, deixando que a sua imaginação trabalhe para definir os contornos dos personagens da maneira que lhe for mais agradável. Muito obrigado pela leitura e pelo comentário!

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  6. Parei para ler e acabei me emocionando, seu texto é leve, ao mesmo tempo forte não tem como não fica assim.

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    1. Obrigado, Jésus! Seu comentário foi breve, gentil e muito bem recebido.

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