segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Pérola Negra, Pérola Branca


"Ninguém nasce odiando as pessoas por causa da cor de sua pele, ou por seu passado, ou por sua religião. As pessoas aprendem a odiar e, se elas podem aprender a odiar, elas também podem aprender a amar - já que amar é um sentimento que vem com mais naturalidade ao coração humano do que o seu oposto".
                                                                                                                                - Nelson Mandela



     A força implacável do tempo sujeita tudo à mudança constante. E evidencia faces opostas de uma mesma moeda: por um lado, provoca rupturas, despedidas, envelhecimento; por outro, permite o recomeço, a surpresa, abre as portas para o inusitado e possibilita que feridas profundas se cicatrizem, no corpo e na alma. Com Catarina não foi diferente: a garota de olhos ingênuos e generosos da época da escola parecia ter saído de uma metamorfose. Tornara-se uma jovem segura, bem resolvida, mantendo, entretanto, a beleza exuberante e o jeito sonhador que lhe eram peculiares.
     Sempre obstinada, percorrera um caminho árduo até a universidade. Ciente dos esforços de seus pais para que desfrutasse de uma educação de qualidade, queria fazer jus ao empenho daqueles que tanto contribuíram para a sua jornada até ali, pretendendo evidenciar seu reconhecimento e sua gratidão através da consecução de um futuro digno e confortável. Estaria, assim, satisfazendo automaticamente às expectativas das duas pessoas mais importantes da sua vida, e que sempre a criaram com amor e dedicação incondicionais.
     As feridas advindas da sua primeira grande frustração amorosa já estavam cicatrizadas. Conseguira em seu íntimo perdoar Alberto, que conhecera ainda criança, seu primeiro amor verdadeiro. O garoto partiu para uma cidade distante e de maneira repentina, por sucumbir à forte pressão familiar a que se via sujeito. Os pais dele, que era descendente de alemães e branco como o marfim, não queriam que se relacionasse com Catarina. Desqualificaram-na enquanto pretendente do filho, por ser negra.
     No auge de seu preconceito mesquinho, os pais de Alberto se recusaram a permitir que a menina apresentada pelo filho mostrasse sua essência doce e o amor sincero com o qual poderia fazê-lo plenamente feliz. Rechaçaram-na por conta da sua pele negra, elemento que compunha a sua identidade e que, portanto, não a tornava inferior a qualquer outra pessoa. Estavam completamente cegos; tanto que não se permitiram perceber todo o valor daquela verdadeira pérola negra.
     Assim, tanto fizeram que enfim conseguiram afastar os dois apaixonados. Alberto se foi, carregando nos ombros o peso da angústia e tencionando abreviar o sofrimento da namorada, que era bondosa e delicada demais para ter que conviver com a hostilidade com que era recebida. Deixou para a amada apenas uma carta banhada em lágrimas, na qual se desenrolava um pedido de perdão. E depois de incontáveis lágrimas derramadas, dúvidas, inconformismo e sofrimento, Catarina se reergueu.
     A menina compreendeu com o tempo que, embora compartilhassem um sentimento de gente grande, eram crianças demais à época; não era sensato exigir muita resiliência por parte de Alberto naquele momento. A pressão de seus pais fora muito incisiva, exageradamente severa. E talvez o garoto realmente tenha pensado a longo prazo, focando no bem estar da namorada quando tomou a decisão de ir embora. Ocorreu então o inevitável: Catarina se fechou para o mundo por um longo período.
     Como se erguesse à sua volta um casulo, objetivando sua evolução pessoal, seu crescimento, a bela garota não teve tempo tampouco disposição para se envolver sentimentalmente com outrem. Agora que havia chegado à universidade, porém, sabia que uma nova etapa da sua vida se iniciaria. Talvez fosse um momento oportuno para romper o casulo e alçar voo, permitindo-se contemplar novas paisagens. Talvez.
     Depois do episódio lamentável com os pais de Alberto, a jovem nunca mais fora vítima direta de manifestações escancaradas de preconceito. Entretanto, notava na sua turma do curso de Direito, em meio a dezenas de alunos, apenas mais um colega negro. Reflexos de uma tendência histórica à marginalização, mas que nem todos faziam questão de perceber. A população negra no país era notoriamente numerosa; entretanto, onde estavam seus representantes? Por que apenas dois alunos negros em uma turma de curso superior? Qualquer pessoa de boa vontade notaria algo muito incoerente nessa evidente disparidade.
      Poucos dias naquela sala bastaram para que Catarina percebesse que teria de reunir forças para lutar novamente contra o provável preconceito de pessoas menos esclarecidas. Estava se apaixonando, de novo. E, mais uma vez, quem começava a prender sua atenção e a tomar conta dos seus pensamentos tinha a pele branca. Entretanto, havia uma diferença essencial em relação ao que sentira por Alberto. Catarina agora estava se apaixonando por Pérola, outra menina da sua turma.
     A princípio, Catarina não conseguia entender seu sentimento pela colega de turma. Ela não negava, sequer se culpava internamente por admirar outra mulher. Sabia que existem formas diversas de amar, e que quando o sentimento é sincero, todas devem ser respeitadas. É justamente a diversidade que enriquece o mundo. O amor verdadeiro não se sujeita a regras ou a limites, tampouco é privilégio a ser desfrutado exclusivamente por um homem e uma mulher; por conseguinte, pessoas bem esclarecidas e verdadeiramente humanas não se prestariam ao papel lamentável de condenar qualquer expressão de um sentimento tão nobre.
     Ainda assim, de início a dedicada estudante teve dificuldade para compreender. Afinal, fora profundamente apaixonada por Alberto e ainda sentia atração por outros rapazes. Talvez, no tempo em que passara recolhida no seu casulo, evitando se interessar por outra pessoa, sua sexualidade tenha desabrochado em seu íntimo.                
      Por mais que a atração por uma pessoa do mesmo sexo tivesse se manifestado de forma aparentemente repentina, a jovem sentia que estivera sempre dentro de si, em potencial. Talvez estivesse apenas adormecida, e tenha se desenvolvido com o tempo, na adolescência, em seu período de recolhimento emocional. De uma coisa ela tinha certeza: sentir atração por Pérola não era uma escolha consciente.
     Não se tratava de uma opção, de um desígnio autônomo. Era involuntário, era inegável; e ainda que negasse, que tentasse evitar o sentimento, ele continuaria ali, habitando em seu ser. Sentia que se tentasse fugir de tudo o que estava sentindo, mais cedo ou mais tarde seria traída por seus desejos. Poderia até não dar voz aos seus instintos, privando-se temporariamente de se relacionar com outra mulher, mas era inútil: a vontade não deixaria de existir. Era algo que já fazia parte da sua identidade, tão natural e humano quanto a cor da sua pele.
     Pela primeira vez alguém do mesmo sexo provocava em Catarina uma sensação mais intensa, diferenciada. Estava acostumada a reconhecer e a apontar a beleza de outras mulheres, sem nutrir, todavia, real interesse por elas. Com Pérola, porém, era diferente. O sorriso radiante da colega a desconcentrava; seus cabelos longos e escuros, em contraposição com o tom de sua pele, as sobrancelhas bem delineadas, o olhar doce e gentil e os gestos suaves conferiam-lhe um ar angelical. A jovem fazia jus ao seu nome: era outra joia, delicadamente lapidada pela vida.
     Pouco se falaram nos primeiros dias de aula. Catarina desejava, mas temia aproximar-se mais da colega e causar algum desconforto ao evidenciar seu interesse. Manteve-se a certa distância, mas Pérola estava sempre presente em seus pensamentos.
     Decorridas as primeiras semanas, a turma combinou uma festa. A primeira festa, na casa de um aluno, para que pudessem se conhecer melhor fora da sala de aula, em uma situação mais descontraída. Na data marcada, Catarina tomou seu banho, colocou um vestido amarelo-claro confortável, bem soltinho e pouco acima dos joelhos, e rumou para o local da festa. Adorava aquele vestido, que ganhara da mãe no último aniversário. Sentia-se leve com ele, como uma borboleta que, depois da metamorfose, saíra de um casulo escuro.
     Assim que chegou, a linda moça negra em seu vestido amarelo teve a beleza exaltada pelas meninas – e pelos meninos também, em comentários discretos. Ela já conseguia se sentir à vontade na companhia dos colegas, que sempre a trataram com simpatia e carinho. Pouco tempo depois, Pérola apareceu. Com um vestido verde-claro também um pouco acima dos joelhos, era outra beldade da turma. Outra borboleta, livre, encantadora. Por alguns segundos, Catarina ficou atônita. Estava apaixonada, não restava dúvida.
     Ao longo da festa, foi Pérola quem se aproximou da colega, abordando assuntos diversos. Descobriram que moravam no mesmo bairro. Sorrisos, brindes, gargalhadas. Catarina sentia seu espírito inebriar-se a cada palavra da moça que admirava em segredo, e cuja companhia se mostrava ainda mais agradável do que imaginava. Demorou a perceber que já havia anoitecido e, com pesar, concluiu que precisava se despedir de todos. Deu então um abraço e beijou com sincero carinho o rosto de Pérola, enquanto seu coração batia em um ritmo deveras acelerado. Abraçou também os demais presentes e agradeceu ao anfitrião pelo convite. Já fora da festa, entretanto, teve uma surpresa muito agradável. Gritaram seu nome. Ao virar-se, contemplou o vestido verde inconfundível, usado pela linda jovem que fazia gestos para que esperasse.
     Como moravam na mesma região, Pérola decidiu aproveitar a companhia de Catarina para ir embora. Assim, foram caminhando lado a lado, contando mais histórias, compartilhando experiências e rindo como duas crianças. Sentiam-se exatamente assim: duas crianças brincando juntas. No meio do trajeto de ruas já desertas, chegaram à grande ponte da cidade. O vento passava vigorosamente por ali.
     Sem avisar, Pérola tirou os sapatos, correu até uma das extremidades da ponte e subiu na mureta de concreto que havia ali. Do lado de lá, o abismo que a distanciava do rio de águas vorazes. A princípio, Catarina ficou temerosa, mas entendeu o recado. Tirou também seus sapatos, correu até a mureta, subiu com cuidado e posicionou-se logo atrás da colega. Ambas começaram então a caminhar lentamente, equilibrando-se a passos sincronizados; braços abertos, um pé após o outro. Uma queda daquela altura seria fatal, mas a parte do monumento sobre a qual caminhavam não era muito estreita. Havia um pequeno risco, que instigava as duas, mas estavam na companhia uma da outra. Nada de ruim poderia acontecer ali.
     Com o vento forte, os vestidos esvoaçavam. Se houvesse mais alguém ao longe na rua àquela hora da noite, teria a impressão de ver duas grandes borboletas voando sob a luz intensa do luar. Tecidos que dançavam juntos, verde e amarelo se sobrepondo; verdadeira representação despretensiosa e viva da renomada bandeira de um país diverso, miscigenado, plural. Depois de percorrerem praticamente toda a extensão da ponte dessa maneira, as duas enfim desceram.
     Catarina enalteceu a beleza estonteante da lua, Pérola apontou para o magnetismo da correnteza intensa do rio lá embaixo. Disse sentir uma atração mórbida pela água em movimento, algo que considerava muito bonito de se ver. Arrepiou-se ao descrever a sensação, como se a força do rio percorrendo seu caminho a puxasse, a chamasse para mergulhar na imensidão. Como o céu, que desperta a vontade de voar, de ser desbravado. Catarina, um pouco assustada, não se conteve e abraçou a companheira desavisadamente. Nada disse, mas era como se pedisse para que a outra ficasse. Queria Pérola ali, inteira, no mundo real. E esta, surpresa com os braços aconchegantes que a envolviam, retribuiu com um longo beijo.
     Era o primeiro beijo das duas. Era a primeira vez que beijavam alguém do mesmo sexo. Dois corações aquecidos e disparados. Ficaram se olhando por longos instantes, trocando carícias diversas, dispensando palavras. Por fim, depois de caminharem por mais alguns minutos, despediram-se com outro beijo, um abraço apertado e sorrisos de imensurável contentamento.
     Nos dias subsequentes, continuaram se encontrando quando e onde podiam, ainda às escondidas. Por mais que fossem duas jovens bem resolvidas, sabiam que haveria gente que não respeitaria o amor que sentiam; gente que julga, que maltrata, que enche a boca para falar que o mundo precisa de mais amor, mas que na prática não o permite, não o reconhece em suas diversas formas, propagando o ódio. Aos poucos o sentimento entre as duas ficava mais evidente; em outra festa da turma, beijaram-se na frente de todos. Houve quem ficasse um tanto impressionado; mas, no fim, todos aplaudiram e apoiaram o relacionamento das colegas, reconhecendo a coragem de ambas.
     Catarina decidiu, depois de mais de um mês ao lado de Pérola, contar sobre seu relacionamento a seus pais. Sua amada, entretanto, dizia não estar preparada para tal revelação. Acreditava que a notícia não seria bem recebida, e que teria que lidar com o preconceito dentro da própria casa, uma vez que os pais eram extremamente conservadores, alienados pelo fanatismo religioso e viviam reclusos numa bolha imaginária, como se tivessem medo de enxergar o mundo como ele é. Ainda assim, sabiam que mais cedo ou mais tarde teriam de se abrir com os familiares, e foi o que Catarina fez logo que juntou toda a coragem suficiente.
     Ela também temia a reação dos pais, ambos religiosos, mas acreditava que por lidarem ao longo da vida com o preconceito em razão da cor da pele, julgariam menos, compreenderiam com maior facilidade. E não estava totalmente enganada. Embora tenham ficado impressionados, nenhum dos dois rejeitou a própria filha. Amavam-na demais para assumir qualquer postura arbitrária e intransigente, e entendiam que a religião em que acreditavam sugeria a amor ao próximo; não tinham a razão e a bondade ofuscadas pelo fanatismo.
      O pai, principalmente, pouco falou. A mãe, entretanto, indagou se o envolvimento com Pérola não seria passageiro, mera tentativa desesperada de esquecer e evitar decepções com rapazes, em especial a que se deu com Alberto. Mas Catarina estava convicta. Não se tratava apenas de sentir-se compreendida pela parceira naquela relação. Mais do que isso, sentia inegavelmente forte atração física por ela.
     A sua mãe também se mostrou contrariada pela hipótese de não poder ser avó, por talvez não receber da única filha os netos que tanto desejava. E a jovem, pacientemente, relembrou sua enorme afeição por crianças e ressaltou que um relacionamento homossexual não implica automaticamente em impossibilidade de ter filhos. Havia métodos alternativos para tê-los, inclusive a adoção, um gesto humano e nobre que muitas vezes salva crianças abandonadas de um futuro indigno ou trágico. E Pérola compartilhava fervorosamente do desejo de criar algumas crianças, pelo menos um casal.
     Catarina ainda fez questão de frisar para seus pais que não se tratava de uma opção, de uma escolha consciente; afinal, ninguém em sã consciência escolheria o caminho mais difícil. Sabia que sua sexualidade a acompanhava desde os primeiros dias. Nenhuma pessoa, podendo escolher, optaria por ser motivo de piada para gente inescrupulosa, por ter que lidar com o preconceito alheio e conviver com o risco de ser agredida nas ruas simplesmente por amar alguém do mesmo sexo. E os dois ouvintes, comovidos, perceberam nesse momento a necessidade de apoiar a filha, que sempre fora motivo de orgulho para ambos. No fim das contas, era a mesma Catarina doce, meiga e querida de antes; tratava-se de mero detalhe, que não a tornava menos especial ou indigna de respeito e amor. Não estava cometendo crime algum, não estava prejudicando os outros; estava apenas tentando amar em paz.
     Pérola comemorou a conquista da amada, o seu bom desempenho e a compreensão dos seus pais, fundamental para que pudessem viver com tranquilidade. Todavia, pediu mais tempo para fazer o mesmo, ciente de que no seu caso não teria tanta facilidade. Tinha os olhos carregados de tristeza ao cogitar a hipótese, prevendo ser rejeitada. Mas Catarina era compreensiva, não exigia que sua companheira tomasse qualquer atitude nesse sentido, não enquanto não parecesse oportuno.
     Ao longo do relacionamento, tiveram que lidar com inúmeras adversidades. Depararam-se com quem se via no direito de rotular como pecado o amor que nem mesmo as duas conseguiam definir. Assim, Catarina acabou se afastando um pouco de sua religião, que era utilizada de maneira tendenciosa pelos mais inescrupulosos para condenar e hostilizar relacionamentos sinceros como o seu. Humanos mal intencionados que ousavam falar em nome de Deus ao proferir barbaridades.
     Não deixou, porém, de acreditar no seu Deus. Em sua concepção, havia um ser superior, generoso, que não oprime, não segrega, não faz distinção entre as pessoas. Um Deus que deveria inspirar amor, e não ter seu nome invocado para justificar o preconceito e a propagação do ódio. Afinal, a sua sexualidade fazia parte de sua essência, a acompanhava aonde quer que fosse; e se mesmo assim ela estava ali, caminhando com saúde pelo mundo, é porque seu Deus não era contrário à sua existência de tal maneira, e prezava por sua vida. Ele de certo a amava exatamente como ela era, em todas as suas peculiaridades. Afinal, em aparência somos diferentes uns dos outros, mas em essência nos aproximamos.
     Ademais, havia também quem rotulasse sua forma de amar como doença. Doentes estavam, provavelmente, os que tentavam conquistar glória atribuindo a si mesmos o domínio de supostos métodos de cura para pessoas como Catarina, que apenas queria poder expressar seus sentimentos da maneira que a fizesse plenamente satisfeita e realizada. Ao contrário do que estes diziam, ela nunca estivera tão lúcida e saudável. Eles, sim, padeciam de um mal grave: da cegueira provocada pelo preconceito, pela homofobia. Da falta de amor e respeito pelo próximo. Estavam completamente contaminados pela ignorância, envenenados pelo ódio gratuito. É esse tipo de mal que a sociedade deveria se preocupar em tratar, para que as futuras gerações fossem mais tolerantes e desfrutassem de verdadeira harmonia.
     Certa noite, em uma balada, Catarina e Pérola foram abordadas por dois rapazes. Os jovens, demasiado machistas, afirmaram que elas escolheram gostar uma da outra porque certamente ainda não haviam desfrutado de momentos de prazer com homens de verdade. Irritada, Pérola bradou para que se retirassem, dizendo que com um comentário tão desprezível e desrespeitoso como aquele, os dois estavam longe de ser homens de verdade, e que não precisava de ninguém além da mulher que amava ao seu lado, muito menos de dois idiotas. Seus momentos de intimidade com Catarina realmente eram completos, mágicos. Carinho, cumplicidade, cuidado, desejo, química, prazer, amor. A relação entre as duas tinha todos os elementos para que fossem muito felizes enquanto durasse.
     E foram, sim, muito felizes juntas. Contudo, Pérola se mostrava realmente perturbada com tanto preconceito e hostilidade por parte dos outros. Fanáticos religiosos maliciosos, que perseguiam e atacavam gratuitamente os homossexuais; colegas espancados vez ou outra por manifestarem afeto em público; supostos amigos que se distanciavam ao tomar conhecimento da sua orientação sexual; comentários ofensivos dos próprios pais que, desconhecendo a sexualidade da filha, feriam-na sem perceber; a impossibilidade de viver livremente o seu amor; gente que a considerava doente, pecadora, demoníaca. Aquilo tudo era demais para a cabeça de alguém que nunca quis fazer mal a outrem, que apenas desejava viver tranquilamente, de acordo com sua natureza, como qualquer outra pessoa. Invadiam sua intimidade, tentavam ditar seu comportamento, não respeitavam sua individualidade. E o sorriso da bela jovem aos poucos se esvaía.
     Pérola chegou ao seu limite quando os pais, suspeitando das saídas demoradas da filha, aproveitaram sua ausência para vasculhar sua mochila e encontraram diversos bilhetes com declarações de Catarina. Ambos entenderam do que se tratava e ficaram perplexos, furiosos. Não queriam ser obrigados a conviver com o que consideravam ser uma anomalia.
     Assim que a filha voltou para casa, humilharam-na. O pai por pouco não agrediu a moça, que nada fazia além de chorar. Disseram ter nojo da relação que chamavam pecaminosa e impuseram uma condição cruel: se fazia questão de continuar com outra mulher, deveria sair imediatamente de casa e ir morar com ela, sem levar dinheiro, roupas ou qualquer outro objeto. Surpreenderam-se muito ao perceber que Pérola, soluçando de tanto chorar, não conseguira proferir sequer uma única palavra e realmente se retirou  da casa, que naquele momento parecia não ter chão.
     A pobre jovem, desolada e completamente desorientada, começou a vagar pelas ruas próximas. No corpo, o vestido verde-claro que usava no dia em que conhecera Catarina. Estava em estado de choque, de modo que não percebeu que alguém se aproximava. Quando finalmente ouviu um barulho mais alto, virou-se, ansiando a presença de sua namorada. Mas enganara-se, não era ela. Logo atrás de si estava um dos garotos que as abordaram na recente balada, bêbado.
     O rapaz se aproveitou do descuido de Pérola para pegá-la à força. Disse que não havia se esquecido de seu rosto, que ela estava linda com aquele vestido e que iria ensiná-la a gostar de homens. Como se ele tivesse a capacidade e o direito de determinar do que ela deveria gostar. Empurrou então a moça indefesa ao chão, abriu o zíper da calça, usou de sua força para dominá-la e a violentou. Não havia ninguém na rua naquele momento, e ninguém ouviu os gritos e súplicas desesperados da jovem. Não faziam questão de ouvir os brados dos oprimidos. O povo pode ser heroico, o brado pode ser retumbante, mas nem sempre estão preparados para ouvi-lo. Depois de algum tempo, o rapaz foi embora às pressas, rindo e deixando-a estirada na calçada.
      Após muito esforço, Pérola conseguiu se levantar. Estava suja, sentia-se imunda. Tomada por um asco indescritível, não tinha mais forças para chorar. Sua vida tinha se transformado num pesadelo. Começou a vagar outra vez, aparentemente já não tinha mais nada a perder. Em meio às andanças sem direção, deparou-se com a grande ponte. A ponte em que dera seu primeiro beijo em Catarina.
     A passos lentos, aproximou-se da mureta de uma das extremidades. Tirou os sapatos. Subiu. O vento estava furioso; seu vestido, agora rasgado, esvoaçava ainda mais. Estava de pé, com o olhar perdido. Depois de alguns instantes olhando para o nada, curvou a cabeça e contemplou o rio furioso lá embaixo, chocando-se contra grandes rochas. A água mais uma vez a chamava. E agora Catarina não estava presente para segurá-la.
     Abriu os braços. Pensou na amada, com intenso pesar. Uma lágrima brotou de seus olhos e caiu no abismo à sua frente. Não, não havia mais o que perder. Se não podia viver livremente o amor que sentia, a própria vida não valia a pena. Nem seus pais a queriam por perto. Desejou que a namorada estivesse ali, para impedir seu impulso; mas estava só. Respirou profundamente, fechou os olhos, sentiu o vento contra a sua pele. Inclinou lentamente o corpo para frente e atirou-se, atendendo enfim ao chamado das profundezas.

     Lá embaixo, suas lágrimas e seu corpo fundiram-se com a água.
Fora tragada violentamente pela correnteza, absorvida pela imensidão. Alimentou a fúria do rio. Anos se passariam e o corpo misteriosamente jamais seria encontrado. Ninguém saberia dizer para onde teria ido.
     Catarina abriu os olhos. Por um momento, parece ter cochilado na varanda de sua casa. Acordou com a foto de Pérola no colo. De vez em quando, gostava de tomar sol na varanda contemplando aquela imagem. Anos se passaram desde que sua amada sumira. Sentiu uma forte vontade de chorar ao lembrar-se dos momentos lindos que viveram juntas e que por alguma razão não voltariam; sabia, em seu íntimo, que Pérola havia partido definitivamente, para algum lugar muito, muito distante. Mesmo perdida em suas lembranças, teve a sensibilidade de perceber a passagem de uma linda borboleta, com grandes asas em tom verde-claro. Com os raios solares, suas asas reluziam intensamente, parecendo compor uma chama verde que dançava no ar. Todavia, foi interrompida por dois beijos carinhosos, um em cada lado do rosto.
     À sua esquerda, a pequena Inês. À direita, o garoto, Igor. Seus filhos. Os filhos que Pérola sempre sonhou ter, crianças adoráveis que Catarina adotou em homenagem a ela. Quis realizar o sonho que a companheira não teve tempo de conseguir, devia-lhe isso. Amava incondicionalmente os dois pequenos, que retribuíam sem economizar. A felicidade reinava naquele lar.
     Se encontrará um novo amor, não se pode dizer. O tempo decidirá. Apesar de ter sofrido por longos anos, encontrava-se feliz, enfim. Não tinha mais Pérola ao seu lado, também não podia mais contar com a presença dos pais. Faleceram pouco depois que concluiu a sua graduação. Primeiro, ele; algum tempo depois, ela. Ambos com muito orgulho da filha amada e com a sensação de dever cumprido ao comemorarem sua formatura. Consideravam-na preparada para a vida, portanto sentiam-se também preparados para abdicar dela, descansando em paz. Caberia à recém-formada pérola negra lidar com estas e outras perdas que o destino impõe a todos. E ela aprenderia, com ímpar propriedade. A dor faz crescer, possibilita o aprimoramento pessoal. Ademais, desfrutava agora do amor puro e despretensioso de duas crianças divertidas e inocentemente carinhosas. 
     Advogada renomada, Catarina hoje se dedica à luta pelos direitos das minorias e é requisitada para ministrar palestras em instituições diversas. Encerra seus discursos sempre com as seguintes palavras: “você não precisa passar fome para que se incomode com a desigualdade social e a consequente marginalização dos menos favorecidos. Da mesma maneira, não é necessário ser negro para ser contra o racismo, tampouco ser homossexual para se mostrar contrário à homofobia. Também não precisa ser uma mulher para repudiar o machismo. Para ser contra qualquer forma de preconceito, portanto, não é necessário ter sido ou tornar-se uma vítima direta dele. Você só precisa reconhecer que ele existe e ser detentor(a) de um pingo de senso de humanidade”.



*Esta
é uma história fictícia. Todavia, se torna real diariamente ao redor do mundo. Catarina ou Pérola podem talvez representar a angústia que vive a sua melhor amiga, que teme sua rejeição. Podem também representar, quem sabe, sua irmã, ou a sua filha, que te amam e que adorariam poder contar simplesmente com sua compreensão e respeito, em vez de serem abandonadas ou tratadas com desprezo e hostilidade. Poderiam, inclusive, representar a sua realidade. Antes de julgar, de condenar ou de inferiorizar algo que não sente, tente colocar-se no lugar do outro. Perceba as adversidades, crueldades e injustiças a que muitos ainda são submetidos; seja por conta da sua aparência, das suas condições financeiras, da roupa que usam, do seu peso, da cor de sua pele, da sua forma de manifestar o amor, de tudo aquilo em que acreditam. Tudo isso não os torna menos humanos. Faça algo pelo outro, não se preste a reproduzir tanta opressão. Ainda que leve uma vida tranquila, faz bem pra alma abandonar a zona de conforto em prol de outrem. O mundo precisa, realmente, de mais amor. Que tal começar fazendo a sua parte para difundi-lo?


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A Pérola Negra e o Marfim




Você não precisa passar fome para que se incomode com a desigualdade social e a consequente marginalização dos menos favorecidos. Da mesma maneira, não é necessário ser negro para ser contra o racismo, nem ser homossexual para se mostrar contrário à homofobia. Também não precisa ser uma mulher para repudiar o machismo. Para ser contra qualquer forma de preconceito, portanto, não é necessário ter sido ou tornar-se uma vítima direta dele. Você só precisa reconhecer que ele existe e ser detentor(a) de um pingo de senso de humanidade.


     Catarina, uma garota que apesar da pouca idade já demonstrava sede de viver, levava sempre consigo um sorriso de gente grande, generoso e inconfundível. Trazia nos olhos o brilho de uma alma inocente, preparada para amar sem moderação. Sua família não tinha dinheiro de sobra, mas sempre viveram com conforto e muita dignidade.
     Não era uma “moreninha”, como muitos costumavam dizer, como se este fosse um termo mais agradável aos seus ouvidos. Era negra, isso sim - e negra com orgulho! Reconhecia seu devido valor, bem como a relevância, a contribuição e os sacrifícios inegáveis dos seus antepassados para a formação da sociedade plural em que se via inserida. Por todos esses motivos, jamais negaria suas origens. Jamais menosprezaria a cor da sua pele. E razões para se orgulhar não lhe faltavam: a genética tinha produzido uma joia.
     Os traços fortes e exuberantes da sua face compunham um todo simétrico e harmônico. A meiguice dos seus gestos, a delicadeza ao andar e a intensidade do seu olhar eram o prenúncio da mulher encantadora que se tornaria. Tratava-se de uma verdadeira pérola negra.
     Logo que ingressou na adolescência, Catarina conheceu Alberto. O acaso conspirou para que fossem matriculados em uma mesma turma da escola. Ele, descendente de alemães, nasceu rodeado pelo luxo e acostumou-se a ter tudo o que queria antes mesmo de conseguir expressar em palavras a sua vontade. Era alto, loiro, branco. Branco como o marfim. Após poucos dias de aula, tornou-se o centro das atenções de um grupo de meninas da classe. Entretanto, foram a indiferença e a beleza generosa de Catarina que despertaram seu real interesse.
     O primeiro passo foi aproximar-se nos intervalos das aulas para conversar sobre matérias, colegas e professores. Depois de alguns dias, já se prontificava a carregar os materiais da garota e a acompanhá-la até a porta de casa. Estava apaixonado, sem volta. Após alguns meses de convívio e declarações recíprocas, ambos resolveram assumir o namoro.
     Pareciam feitos um para o outro: a mistura perfeita, peles que se complementavam, como Yin e Yang. Sol e lua, dia e noite, branco e preto; um casal de encher os olhos. Como mandava o protocolo, era chegado o momento de um conhecer a família do outro. Todos ansiosos: os dois apaixonados e seus pais. Assim, na data convencionada Alberto entrou na sala da sua requintada casa, de mãos dadas com Catarina.
     Os pais do garoto, ao examinarem da cabeça aos pés a sua tão famigerada namorada, não demonstraram qualquer empolgação. Pareciam incomodados, na verdade. Almoçaram todos juntos, sobre a mesma mesa, mas com um clima notoriamente tenso pairando no ambiente. A menina estava se sentindo deslocada, incomodada com o silêncio dos pais de Alberto e com os olhares que deles recebia. Bocas fechadas, mas olhos expressivos, que falavam por si. Olhos de desconforto, de reprovação, de aversão... de preconceito.
     Quando a sós, Catarina tentou desabafar com Alberto, que se esforçava para evitar o assunto. Tudo para não entristecê-la. Com o passar dos dias, entretanto, ela comprovou suas suspeitas por conta própria: surpreendeu-se ao ouvir adjetivos diversos sussurrados em outros cômodos, em alguns dos momentos em que se encontrava na casa do seu amor.
     “Escurinha”, “favelada”, “neguinha”... palavras banhadas em aversão povoavam as conversas que os pais do namorado tinham entre si, sem se preocuparem em controlar o tom de voz.  E por inúmeras vezes, procurando a amada depois de estranhar seu sumiço, Alberto a encontrou encolhida no chão, com a cabeça apoiada nas pernas e a face inundada. Lágrimas que nem pela tranquilidade dele a garota conseguia conter. Lágrimas de quem se sentia menosprezada por algo que era inerente à sua pessoa, que era parte da sua identidade, portanto impossível de mudar; e que nem deveria mudar, uma vez que não a fazia melhor ou pior que ninguém. Eram como lágrimas de sangue, do mesmo sangue de tantos outros negros que fora historicamente derramado ao redor do mundo.
     Catarina sentia, pela primeira vez e na própria pele, a dor lancinante do preconceito. Notava, então, que ser negra a tornava inferior aos olhos injustos e cruéis de alguns; mais do que isso, percebia que para estes a sua cor a tornava desqualificada para se relacionar com um garoto branco.
     Alberto estava completamente dividido. De um lado, o olhar outrora intenso da amada, agora perdido, sem brilho, vazio e encharcado. Do outro, a sua família, pressionando para que terminasse o namoro e abandonasse a garota. Porque ele encontraria qualquer menina que desejasse, alguma que fosse mais “compatível e apta a fazê-lo feliz”, como os pais costumavam dizer, ignorando que Catarina já conseguia fazê-lo transbordar de felicidade. Ameaçaram inclusive suspender qualquer auxílio financeiro para o filho, enquanto ele não colocasse um ponto final em seu relacionamento.
     E em dias que se seguiram, Catarina notou com enorme pesar o seu namorado cada vez mais distante. O garoto não tomava qualquer atitude, evitava tocar no assunto, parecia fazer vista grossa para o sofrimento que ela transpirava. Ele começou a faltar às aulas, aparecendo vez ou outra; procurava-a menos, demonstrava menos afeto... até o dia em que sumiu, definitivamente.
     Já com um mau pressentimento, a abatida garota criou coragem para fazer algo que há muito se recusava: voltou à casa de Alberto, para saber qual era a razão do sumiço do amado. Quem a atendeu foi a empregada, que trazia consigo um envelope e o entregou à menina aflita por respostas. Catarina, pressentindo o teor do que estava no envelope, agradeceu à empregada e virou-se, iniciando o retorno para casa. Com o coração disparado e ainda sem coragem para abrir a carta, sentou-se em um dos bancos da praça; no banco em que costumava sentar-se para trocar carícias por horas a fio com Alberto.
     Ansiando por encerrar logo a angústia que a consumia, abriu o envelope e encontrou uma mensagem, indubitavelmente escrita de próprio punho pelo seu amor. Nela, o garoto pedia para que jamais se esquecesse de todos os momentos mágicos que passaram juntos; reiterava por diversas vezes que ela tinha conquistado sua admiração, seu carinho, seu amor. Explicava que a família não aprovava aquela relação, impondo um afastamento que ele não desejava; todavia, não tinha forças suficientes para enfrentar as ordens de seus pais, tampouco para ver as lágrimas da sua amada frente à rejeição e menosprezo com que a tratavam. Ele não queria se posicionar a favor de um lado ou do outro. Eram amores distintos em confronto. Assumiu ser covarde, ainda dependente do auxílio material familiar, o que lhe orientava a respeitar a vontade dos pais. Confessou ter chorado enquanto redigia a carta, mas nem precisaria fazer tal consideração: em algumas palavras havia borrões, manchas sobre a tinta azul da caneta. Eram evidentemente os pontos em que as lágrimas caíram e mancharam o que estava escrito. Por fim, pedia perdão por ter saído da vida da amada de maneira tão repentina, supostamente desejando que ela encontrasse outro alguém que tivesse a coragem necessária para fazê-la feliz.
     Alberto tinha se mudado. Fora morar com uma tia em outra cidade, transferido para outro colégio. O marfim tinha virado pó, que o vento levou. Catarina estava só. Foi então a sua vez de chorar, de encharcar a carta. A princípio, sentiu raiva de Alberto. Raiva da sua inércia, da sua covardia. Questionou a veracidade do amor que ele dizia sentir, perguntou-se se não haveria algum outro motivo para a partida inesperada do namorado. Não conseguia entender, não fazia sentido; não naquele momento. Não conseguiria também perdoá-lo de imediato; não enquanto sentisse aquela dor aguda no peito ao se lembrar de todas as juras de amor, de todos os planos traçados em conjunto, e que agora pareciam meras palavras vazias jogadas ao vento.
     Revoltou-se também contra os pais do garoto – criaturas vis, pequenas, limitadas. Incapazes de permitir que o próprio filho fosse feliz! Estavam cegos pelo preconceito, não se permitiam ver a beleza que há em cada ser humano, independentemente de suas características físicas. Talvez notassem toda a doçura e profundidade de Catarina, se ao menos deixassem que a garota mostrasse os valores e qualidades que trazia em si. Mas não, ela não teve tempo para isso, já que de imediato a menosprezaram, diminuíram, prejudicaram – tudo pelo fato de ser negra. Não tinham argumentos válidos, razões verdadeiras para pretenderem afastar os dois namorados.
     Branco e negro não podem se misturar? Quem disse isso? Quem teria direito a julgar a vida e os sentimentos alheios? Quem em sã consciência ousaria deslegitimar o amor sincero entre duas pessoas, analisando de longe, e pautando-se em meras características superficiais dos que se amam – características essas que não fazem um inferior ao outro? Quem se presta a esse papel certamente ainda não conheceu o verdadeiro amor. Enchem a boca para falar que o mundo precisa disso, de mais amor, mas não o conhecem, não o respeitam.
     Tiraram de Catarina uma parte de seu encantamento pelo mundo; mostraram-na como as pessoas, quando pouco esclarecidas, podem ser insensatas, cruéis, extremamente preconceituosas. Tiraram-na também a oportunidade ímpar de viver uma história de amor puro e verdadeiro por conta da cor da sua pele – o que não deve, jamais, ser fator determinante do tratamento que se confere a outra pessoa. Somos distintos apenas em aparência, o que é perfeitamente natural; enquanto semelhantes em essência, entretanto, deveríamos estar todos caminhando lado a lado, e não menosprezando ou desfavorecendo alguns com base em características que fazem parte da sua identidade e não os tornam menos gente.
     O coração da bela garota negra estava marcado com profundas feridas; o tempo as cicatrizaria, bem como traria o perdão que Alberto pediu na carta. Entretanto, a memória não permitiria que se esquecesse de que há muitas pessoas vazias, prepotentes e mal resolvidas consigo mesmas, a ponto de ousarem interferir nos sentimentos alheios e de se julgarem superiores às outras. Disso não poderia se esquecer; é questão de sobrevivência em meio a um mundo que muitas vezes se mostra hostil e desigual.
     Teria Catarina a sorte de encontrar um novo amor, tão intenso quanto o que conheceu em seus dias com Alberto? Deixariam, enfim, que vivesse uma história intensa e feliz com quem viesse a se envolver emocionalmente? Eram essas mesmas perguntas que ela se fazia naquele instante, ao perceber-se sozinha, abandonada, tendo seu amor suprimido pelo preconceito alheio.

(CONTINUA)...

* Em tempo: neste e em todos os dias, enquanto eu viver, emanarei meu reconhecimento, apoio e aplausos aos negros e a todas as pessoas que se veem marginalizadas neste mundo ainda injusto e desigual. Aos que lidam com bullying, com preconceito, com desigualdade ou com qualquer outro tormento por conta do que quer que seja, e que mesmo assim se mantêm firmes, arriscando um sorriso aqui e ali: não desistam! Danem-se os julgamentos, concepções e ofensas alheias, de quem nada soma às suas vidas; preocupem-se apenas com a voz da sua consciência. Não se condenem, não se agridam, não neguem os impulsos e peculiaridades que suas respectivas identidades lhes impõem a manifestar nesta breve existência. A beleza do mundo está justamente na pluralidade, na diversidade – o que permite que eventualmente um alguém complemente outro alguém.