domingo, 20 de setembro de 2015

O Abismo do Esquecimento

"Outrora, a velhice era uma dignidade; hoje, ela é um peso".

- François Chateaubriand 

 

 


Havia acabado de receber alta do hospital. Chegou à recepção marchando a passos lentos em virtude do recente mal estar, conduzida por um médico deveras jovem e simpático. Ansiosíssima por rever sua querida família, não conteve o sorriso largo ao encontrar o marido Leônidas acompanhado de seus maiores tesouros: Bianca, Dalva e Inácio. Este ainda se encontrava no colo do pai, mas as meninas já frequentavam os primeiros anos da escolinha. 

Ela se considerava uma mulher realmente feliz; fora profundamente apaixonada por Leônidas Magalhães, um vereador aclamado pelo povo da cidade, digno e honesto, com quem conseguira se casar numa cerimônia inesquecível. Todo aquele ardor inicial da paixão tórrida havia amenizado, à medida que as coisas se assentavam e seus sentimentos se cristalizavam num amor calmo, recíproco e, sobretudo, verdadeiro. Efeito previsível de vários anos de companheirismo. Da união nasceram os três herdeiros, e ambos os pais dedicavam seus esforços para que as crianças tivessem um futuro promissor ou, no mínimo, confortável. O marido há muito degustava do prestígio de sua carreira política cada vez mais bem sucedida; ela era escrivã no fórum da cidade, e também estava muito satisfeita com seu trabalho. A vida lhe havia sido deveras generosa, não poderia negar.

A família vivia em uma casa grande, decorada com extremo bom gosto. O quintal era vasto, cenário de brincadeiras, gargalhadas, tombos e traquinagens dos filhos. Os empregados eram leais, sempre muito bem tratados. Leônidas, a despeito da correria de sua vida política, nunca deixou de ser atencioso, carinhoso e presente em todos os assuntos relacionados à vida doméstica. Grande homem!

Os anos se passaram, no entanto, e o destino da família Magalhães se desenrolou de forma imprevista. Inácio, Dalva e Bianca já não se encontravam mais na mansão. Eram adultos muito ocupados! Cada qual havia seguido o seu próprio caminho, constituído família e o trabalho lhes consumia. As visitas aos pais se tornaram cada vez menos frequentes, até se restringirem ao Natal e à apresentação dos netos recém-nascidos aos avós, breves momentos de raras alegrias.

Os três filhos moravam em outras cidades e pareciam não muito dispostos a enfrentar as distâncias para rever Leônidas e a esposa. Estes, agora idosos e aposentados, sentiam muita falta dos jovens pela casa. Notavam com profundo pesar que os três estavam cada vez mais distantes mas mantinham-se firmes, porque, embora não pudessem mais contar com os filhos, ainda tinham um ao outro. Falavam sobre as “crianças” ao se deitarem, todos os dias, consolando-se mutuamente. Era como se um abismo lhes separassem dos herdeiros. Numa manhã calma de sábado, porém, Leônidas não abriu os olhos. Não atendeu aos chamados da amada, sucedidos de gritos desesperados e interrompidos apenas pelos soluços em meio a um pranto de profunda dor. A dor da perda, sabemos, é deveras lancinante. Ela agora era uma viúva. Era, sobretudo, uma senhora solitária.

Os filhos compareceram ao velório. Abraçaram a mãe, inconsolável. Mal sabiam o que dizer para confortá-la. Nada do que dissessem devolveria a felicidade àquela senhora desolada. Dalva sequer ficou para o enterro; desculpou-se e partiu com o marido sabe-se lá para onde. Inácio, o caçula, sentia remorso ao vê-la tão triste, mas não pretendia largar a sua carreira para cuidar da mãe. Providenciara de imediato a contratação de Suzana, uma cuidadora de idosos experiente e gentil que se mudaria para a mansão e ficaria incumbida de acompanhar os passos da viúva.

Findo o enterro, Bianca também partiu. Depois que os presentes se dispersaram e a mãe prestou sua última homenagem junto ao túmulo do finado marido, Inácio a colocou em seu carro e rumaram para a mansão. Certificando-se de que Suzana já se encontrava em serviço, despediu-se da mãe, ainda abatida, deixando-a na companhia da cuidadora. Como não havia mais alguém a quem se dirigir, a triste senhora confidenciou a Suzana que nunca mais conseguiria chorar. Segundo ela, acompanhar o enterro do marido fez com que despejasse todas as lágrimas que armazenava no corpo; sabia que elas haviam secado, tal qual a felicidade que outrora habitara seu coração.

O tempo passou e a senhora Magalhães começou a se esquecer de coisas simples do cotidiano. A perda de memória progressiva chamou a atenção de Suzana quando, além de raramente se recordar do nome da cuidadora, a viúva solitária esqueceu um bolo no forno. As torneiras das pias estavam sempre abertas, ela perdia as chaves pela mansão e chegou ao ponto de ameaçar ligar para a polícia, por não reconhecer Suzana em sua casa e pensar tratar-se de uma invasora. Em poucos meses ela seria diagnosticada com Alzheimer.

“Essa doença é uma praga”, dizia ela a Suzana. Queixava-se que a vida já lhe havia tirado o marido e as alegrias, e que agora nem mesmo as boas recordações de seus anos felizes permaneceriam para lhe consolar. Como os filhos, que se foram pouco a pouco, a própria memória a abandonaria. Sozinha, naquela casa enorme, que parecia a cada dia mais escura e fria. Suzana era uma boa profissional, mas optava por não criar vínculos afetivos com os idosos sob seus cuidados. Preferia não se apegar para não se sentir responsável por eles. Dessa forma, ouvia atenciosamente a patroa, mas não era dada a demonstrações efusivas de afeto. E era exatamente disso que a senhora Magalhães mais carecia.

A viúva de Leônidas anotava num pequeno caderno tudo o que vivia diariamente, para que pudesse ler e relembrar tempos depois. No entanto, as palavras também começavam a fugir de sua mente, pouco a pouco. Num futuro não muito distante não seria capaz de ler os registros. Esquecia-se com frequência dos termos mais precisos para expressar o que desejava e ficava ansiosa ao tentar encontrar algum substituto para conseguir se comunicar. Não tinha coragem de tirar a própria vida, mas rogou aos céus por diversas vezes para que a sua existência fosse abreviada o quanto antes. Sentia-se tragada pelo abismo do esquecimento, que parecia não ter fim. Acreditava que, quando seu coração parasse de bater nesse corpo de matéria, em algum lugar ela se encontraria com Leônidas. Aliás, a figura do marido resistiu até o fim: foi uma das últimas lembranças a se apagar.

Os filhos também seriam esquecidos; afinal, muito antes se esqueceram da mãe. Não sabia mais o que era o amor; há muito não vivenciava o prazer inenarrável de tal sentimento. Apagou-se de sua memória a sensação, antes mesmo que a própria palavra fugisse do seu vocabulário cada vez mais reduzido. Sentia-se inútil, invisível, insignificante. Seu olhar era um convite à tristeza. Em seus últimos dias, no entanto, ela parecia serena. Arriscava um sorriso cansado em alguns momentos em que Suzana a levava para tomar sol, e só. Não conseguia mais falar. Com tantas palavras disponíveis, sua linguagem se resumia a sons sem sentido. Não sabia mais o próprio nome. Sim, caro leitor, esta mulher tinha um nome: Madalena Soares Magalhães. Mas de que importa o seu nome, se nem a sua pessoa era lembrada? Madalena abandonaria a vida convicta, porque fora abandonada. Alcançaria, enfim, o fundo daquele abismo.