quinta-feira, 1 de outubro de 2015

O Oásis dos Bem-aventurados



 “Amar é mudar a alma de casa.”
  - Mario Quintana



      Amar: verbo complexo, não é? Qual é a fórmula do amor, você sabe? O que define com precisão o momento em que uma pessoa está amando a outra? Como diferenciar o amor da paixão? Existem formas distintas de amar?


      Muitas perguntas, nenhuma resposta concludente. Os diferentes dicionários definem o amor de forma linear: todos os significados apresentados apontam para uma forte afeição por outra pessoa, originada através de laços de sangue ou de interações sociais. Mencionam, ainda, uma atração baseada no desejo sexual. Sou contra a alcunha de “pai dos burros” que é dada aos queridos dicionários, porque, embora sintéticos, esses velhos livrinhos já me salvaram de muitos apuros! Todavia, convenhamos: os significados apresentados não bastam. A mim, pelo menos, não satisfazem. Considero tais definições vazias, superficiais, pobres. Será que as pessoas que escreveram os verbetes dos diferentes dicionários de que dispomos nunca vivenciaram um amor verdadeiro?


      Talvez seja privilégio de poucos, mesmo. Que coisa divina esse sentir! O amor, meus caros, é um sentimento tão puro e forte que reconhece o momento de recuar, de dar um tempo para que as coisas se ajeitem da melhor forma possível. Sem segundas intenções, ele não é compatível com o desejo de posse, tampouco com conformismo ou comodidade. A ideia é a contrária: sair da zona de conforto, num desafio constante de conviver bem e levar felicidade diária ao seu par, ainda que distantes. Aos afortunados que se regozijam do amor verdadeiro basta a alegria do outro, independente de onde e com quem ele esteja. Quem ama de verdade não titubeia quando chega a hora de abrir mão de certos privilégios para que todo mundo consiga trilhar seus próprios caminhos e fique feliz, ainda que às custas de sofrimentos preliminares. Sofre, mas não se impõe. Somos todos humanos, temos os nossos limites pessoais. O amor verdadeiro reconhece e respeita todos eles e é mesmo eterno, ainda que a relação não dure para sempre. 


      Amar, penso eu, não é estar sempre junto. Isso é status, ou dependência. Trata-se da verdadeira libertação, e não da escravização de qualquer dos envolvidos. Ama-se para se sentir transbordante, não para se sentir completo. Cada um deve ser completo por si só e, nessa sua completude, somar à atraente completude do outro; permitir que ele esteja sempre radiante, mais do que satisfeito. O amor é o polimento da alma, da bondade humana. É vida em seu estado mais lapidado. “Penso; logo, existo”. Amo; logo, vivo. Todos nós deveríamos viver plenamente, e não apenas ter uma existência efêmera e vazia. O amor traz essa profundidade ao nosso espírito.   Aprendi isso na prática, vivenciando um sentimento verdadeiro e inédito. 

      Numa relação a dois, em algum momento uma ruptura pode se fazer necessária; não por falta de amor, mas porque as circunstâncias não são favoráveis. Chamem de Deus, de Destino, de sacanagem da vida ou como quiserem. O fato é: as relações se modificam, mas o sentimento permanece. Basta ter maturidade para encarar. "Aceita que dói menos"! Sentimento é como energia: se transforma, jamais se perde. O amor não morre. O meu não vai morrer, mesmo que a relação se modifique agora. Isso é amar, na minha modesta concepção. É bem querer a outrem acima de tudo, quando se dispõe a fazer concessões e sacrifícios para assegurar o bem estar da pessoa amada. Passa-se por cima de preconceitos, lemas, bordões, fórmulas, senso comum, conselhos, regras. Cai tudo por terra, numa dinâmica maravilhosa de construção, não de destruição! 


      Por todos vocês que repetem que se bastam, que estão fugindo do amor, como eu mesmo tentava me convencer, lamento. Isso é mentir para si mesmo. Torço, do fundo do meu coração, para que em algum momento de suas vidas vocês também consigam vivenciar desse imenso prazer. Nada pode ser mais feliz do que aquilo em que haja amor sincero.



domingo, 20 de setembro de 2015

O Abismo do Esquecimento

"Outrora, a velhice era uma dignidade; hoje, ela é um peso".

- François Chateaubriand 

 

 


Havia acabado de receber alta do hospital. Chegou à recepção marchando a passos lentos em virtude do recente mal estar, conduzida por um médico deveras jovem e simpático. Ansiosíssima por rever sua querida família, não conteve o sorriso largo ao encontrar o marido Leônidas acompanhado de seus maiores tesouros: Bianca, Dalva e Inácio. Este ainda se encontrava no colo do pai, mas as meninas já frequentavam os primeiros anos da escolinha. 

Ela se considerava uma mulher realmente feliz; fora profundamente apaixonada por Leônidas Magalhães, um vereador aclamado pelo povo da cidade, digno e honesto, com quem conseguira se casar numa cerimônia inesquecível. Todo aquele ardor inicial da paixão tórrida havia amenizado, à medida que as coisas se assentavam e seus sentimentos se cristalizavam num amor calmo, recíproco e, sobretudo, verdadeiro. Efeito previsível de vários anos de companheirismo. Da união nasceram os três herdeiros, e ambos os pais dedicavam seus esforços para que as crianças tivessem um futuro promissor ou, no mínimo, confortável. O marido há muito degustava do prestígio de sua carreira política cada vez mais bem sucedida; ela era escrivã no fórum da cidade, e também estava muito satisfeita com seu trabalho. A vida lhe havia sido deveras generosa, não poderia negar.

A família vivia em uma casa grande, decorada com extremo bom gosto. O quintal era vasto, cenário de brincadeiras, gargalhadas, tombos e traquinagens dos filhos. Os empregados eram leais, sempre muito bem tratados. Leônidas, a despeito da correria de sua vida política, nunca deixou de ser atencioso, carinhoso e presente em todos os assuntos relacionados à vida doméstica. Grande homem!

Os anos se passaram, no entanto, e o destino da família Magalhães se desenrolou de forma imprevista. Inácio, Dalva e Bianca já não se encontravam mais na mansão. Eram adultos muito ocupados! Cada qual havia seguido o seu próprio caminho, constituído família e o trabalho lhes consumia. As visitas aos pais se tornaram cada vez menos frequentes, até se restringirem ao Natal e à apresentação dos netos recém-nascidos aos avós, breves momentos de raras alegrias.

Os três filhos moravam em outras cidades e pareciam não muito dispostos a enfrentar as distâncias para rever Leônidas e a esposa. Estes, agora idosos e aposentados, sentiam muita falta dos jovens pela casa. Notavam com profundo pesar que os três estavam cada vez mais distantes mas mantinham-se firmes, porque, embora não pudessem mais contar com os filhos, ainda tinham um ao outro. Falavam sobre as “crianças” ao se deitarem, todos os dias, consolando-se mutuamente. Era como se um abismo lhes separassem dos herdeiros. Numa manhã calma de sábado, porém, Leônidas não abriu os olhos. Não atendeu aos chamados da amada, sucedidos de gritos desesperados e interrompidos apenas pelos soluços em meio a um pranto de profunda dor. A dor da perda, sabemos, é deveras lancinante. Ela agora era uma viúva. Era, sobretudo, uma senhora solitária.

Os filhos compareceram ao velório. Abraçaram a mãe, inconsolável. Mal sabiam o que dizer para confortá-la. Nada do que dissessem devolveria a felicidade àquela senhora desolada. Dalva sequer ficou para o enterro; desculpou-se e partiu com o marido sabe-se lá para onde. Inácio, o caçula, sentia remorso ao vê-la tão triste, mas não pretendia largar a sua carreira para cuidar da mãe. Providenciara de imediato a contratação de Suzana, uma cuidadora de idosos experiente e gentil que se mudaria para a mansão e ficaria incumbida de acompanhar os passos da viúva.

Findo o enterro, Bianca também partiu. Depois que os presentes se dispersaram e a mãe prestou sua última homenagem junto ao túmulo do finado marido, Inácio a colocou em seu carro e rumaram para a mansão. Certificando-se de que Suzana já se encontrava em serviço, despediu-se da mãe, ainda abatida, deixando-a na companhia da cuidadora. Como não havia mais alguém a quem se dirigir, a triste senhora confidenciou a Suzana que nunca mais conseguiria chorar. Segundo ela, acompanhar o enterro do marido fez com que despejasse todas as lágrimas que armazenava no corpo; sabia que elas haviam secado, tal qual a felicidade que outrora habitara seu coração.

O tempo passou e a senhora Magalhães começou a se esquecer de coisas simples do cotidiano. A perda de memória progressiva chamou a atenção de Suzana quando, além de raramente se recordar do nome da cuidadora, a viúva solitária esqueceu um bolo no forno. As torneiras das pias estavam sempre abertas, ela perdia as chaves pela mansão e chegou ao ponto de ameaçar ligar para a polícia, por não reconhecer Suzana em sua casa e pensar tratar-se de uma invasora. Em poucos meses ela seria diagnosticada com Alzheimer.

“Essa doença é uma praga”, dizia ela a Suzana. Queixava-se que a vida já lhe havia tirado o marido e as alegrias, e que agora nem mesmo as boas recordações de seus anos felizes permaneceriam para lhe consolar. Como os filhos, que se foram pouco a pouco, a própria memória a abandonaria. Sozinha, naquela casa enorme, que parecia a cada dia mais escura e fria. Suzana era uma boa profissional, mas optava por não criar vínculos afetivos com os idosos sob seus cuidados. Preferia não se apegar para não se sentir responsável por eles. Dessa forma, ouvia atenciosamente a patroa, mas não era dada a demonstrações efusivas de afeto. E era exatamente disso que a senhora Magalhães mais carecia.

A viúva de Leônidas anotava num pequeno caderno tudo o que vivia diariamente, para que pudesse ler e relembrar tempos depois. No entanto, as palavras também começavam a fugir de sua mente, pouco a pouco. Num futuro não muito distante não seria capaz de ler os registros. Esquecia-se com frequência dos termos mais precisos para expressar o que desejava e ficava ansiosa ao tentar encontrar algum substituto para conseguir se comunicar. Não tinha coragem de tirar a própria vida, mas rogou aos céus por diversas vezes para que a sua existência fosse abreviada o quanto antes. Sentia-se tragada pelo abismo do esquecimento, que parecia não ter fim. Acreditava que, quando seu coração parasse de bater nesse corpo de matéria, em algum lugar ela se encontraria com Leônidas. Aliás, a figura do marido resistiu até o fim: foi uma das últimas lembranças a se apagar.

Os filhos também seriam esquecidos; afinal, muito antes se esqueceram da mãe. Não sabia mais o que era o amor; há muito não vivenciava o prazer inenarrável de tal sentimento. Apagou-se de sua memória a sensação, antes mesmo que a própria palavra fugisse do seu vocabulário cada vez mais reduzido. Sentia-se inútil, invisível, insignificante. Seu olhar era um convite à tristeza. Em seus últimos dias, no entanto, ela parecia serena. Arriscava um sorriso cansado em alguns momentos em que Suzana a levava para tomar sol, e só. Não conseguia mais falar. Com tantas palavras disponíveis, sua linguagem se resumia a sons sem sentido. Não sabia mais o próprio nome. Sim, caro leitor, esta mulher tinha um nome: Madalena Soares Magalhães. Mas de que importa o seu nome, se nem a sua pessoa era lembrada? Madalena abandonaria a vida convicta, porque fora abandonada. Alcançaria, enfim, o fundo daquele abismo. 



 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Olhos nos Olhos


Ao meu amor, com verdade e gratidão.

 

 


      Olhos no espelho. Acostumara-se a contemplar o próprio reflexo com pesar. Não raro, ficava com pena da própria imagem. O pensamento viajava para longe, revisitando um passado repleto de erros e trazendo o amargo sabor do arrependimento. Os olhos vertiam inevitáveis lágrimas de uma vida fria e sem razão. Quando as lágrimas secaram, caiu em si. Precisava tomar alguma atitude, livrar-se de toda aquela angústia, antes que fosse tarde demais. Naquele breve  instante de perseverança e lucidez, uma voz ecoou em sua mente, como se alguém lhe aconselhasse:


“Coragem! Quebra esse espelho!
Deseje que o poder do amor o ajude a amar.
Saiba que sua imagem pode inverter
e sua vida pode melhorar”.

       Apagou a luz. No chão, cacos do espelho e dos pensamentos pessimistas que decidira estilhaçar. Estava no escuro, só, mas por pouco tempo. Mais do que isso, estava livre de toda a negatividade que não lhe permitia agir, sair da zona de conforto. Não mais perderia tempo lamentando-se pela imagem que o espelho lhe apresentava; a partir de então, seu olhar estava preparado para contemplar as mais belas paisagens e surpresas que a vida porventura trouxesse. E foi assim que livrou-se dos cacos e, em vez de limitar sua atenção ao próprio reflexo, passou a enxergar o belo em tudo que o circundava. Trocou o espelho pelas janelas. Incorporou pouco a pouco toda aquela beleza, desabrochou.
      E a escuridão finalmente fora rompida por uma luz tímida, mas capaz de alegrar os seus dias, agora que sabia a importância das pequenas coisas. A luz de um vaga-lume perdido, talvez, mas que providencialmente cruzara seu caminho, e que sabia que se fazia necessário, exatamente ali, naquele ambiente escuro. Um vaga-lume que não tinha asas, mas que esbanjava luz própria através do seu olhar sonhador. Olhos no espelho? Não mais! Dali em diante, seria sempre olhos nos olhos, como é de se esperar de um verdadeiro amor. 


domingo, 19 de abril de 2015

O Menino que Caçava Vaga-lumes



    


  Com apenas cinco aninhos, o pequeno Juca já se revelava um sonhador. Logo que a noite caía, saía correndo pelo vasto quintal do sítio em que morava com os pais, à caça de vaga-lumes mais desatentos. Numa das mãos, empunhava uma redinha costurada pela mãe, Florinda, e amarrada a uma haste de madeira; na outra, trazia o seu potinho, que outrora comportava a saborosa geleia de amora preparada pela avó Guilhermina. O frasco agora tinha outra finalidade: abrigar os vaga-lumes que o pequeno capturaria em suas jornadas noturnas.
       E Juca, tão novo, pensava em tudo: o fundo do pote era forrado com folhas verdinhas de diferentes plantas do quintal; afinal, pensava ele, aqueles vaga-lumes deviam comer pequenas folhas para sobreviver, como faziam tantos outros bichinhos. Não secava o recipiente após lavá-lo, para que os insetos pudessem beber as gotículas de água que restavam no vidro. Por fim, a tampa era furada com a ponta de um espeto em brasa, para que lhes fosse possível respirar lá dentro. Mas era o pai quem manuseava o ferro quente, porque “criança, além de não poder mexer com coisa pontuda, não pode brincar com fogo, senão faz xixi na cama”! Era o que o “Seu” Joaquim dizia. E Juca não teimava, porque morria de vergonha quando acordava com o colchão todo molhado sob seu corpo.
       O garoto não podia se afastar muito da velha casa, porque os pais ficavam preocupados e deixavam-no de castigo. No entanto, logo nas redondezas o pequenino já se satisfazia: havia por ali vaga-lumes para todos os gostos! E lá ia ele, correndo de um lado para o outro e balançando vigorosamente a sua redinha. Na hora de colocá-los dentro do frasco, destampava-o com todo o cuidado, para que os cativos não escapassem. Ficava profundamente irritado quando, ao tentar aprisionar um novo, os demais fugiam e saíam piscando livremente pelo ar. Os pais riam entre si, lamentando pelos vagalumes, pobres vítimas da recreação do filho. 

      Quando indagado sobre o porquê de fazer aquilo, o menino não titubeava: “porque eles são lindos, e eu quero cuidar deles para sempre, ora! Vou ter toda a luz do mundo aqui, dentro do meu potinho! Com esses vaga-lumes, não preciso mais ter medo do escuro, porque, mesmo que a luz acabe, eles irão brilhar para mim”. Sempre que falava isso, o pai lhe advertia de que o mais importante seria manter bem acesa a luz que havia dentro do seu pequeno coração. Porque, segundo o “Seu” Joaquim, quem tivesse luz dentro de si, jamais ficaria no escuro. Mas Juca era muito novo para compreender aquilo e tinha coisas mais importantes para se preocupar: capturar mais vagalumes. Quanto mais aprisionava, mais apareciam! Estavam desafiando sua persistência, mas ele era incansável. E o potinho reluzia cada vez mais, como uma lamparina viva, para a satisfação do pequeno sonhador. “Um lindo espetáculo!”, dizia a mamãe, enchendo-lhe de orgulho.
       A alegria de Juca, porém, não durava muito. Ele adormecia, passava-se algum tempo, e, quando procurava novamente o seu pote para retomar a caçada, percebia que os vaga-lumes não mais piscavam; os coitados sequer se mexiam! Estavam mortos. E aí se iniciava um longo pranto, motivado pela profunda frustração de perder, de forma repentina, algo que lhe era tão valioso. A mãe ficava com o coração partido. E o pai, sempre firme, explicava que com as pessoas poderia acontecer a mesma coisa que ocorria com os vaga-lumes de Juca. Porque “quando a gente se sente preso de alguma forma, a gente perde aos poucos a nossa luz. Ficamos cada vez mais fracos, apagados, até o momento em que paramos de brilhar”. Esse ensinamento também era complexo demais para o entendimento do filho, que preferia deixar para pensar naquilo depois. Ele não podia perder tempo com essas coisas de adultos, tinha mais o que fazer: encontrar novos vaga-lumes; uns bem grandes e brilhantes, para que suas luzes não se apagassem nunca! E assim recomeçava todo o ciclo, que se resumia a uma esperança que dava lugar a uma alegria passageira; esta, por sua vez, posteriormente substituída pela frustração.
       O tempo passou e Juca foi para a cidade grande, onde iniciou seus estudos e começou a trabalhar. Trocou a redinha e o potinho de outrora por lápis, caderno e ferramentas. Esqueceu-se dos vaga-lumes. E estudou muito, por longos anos, galgando cada vez mais degraus rumo ao que ele concebia como seu sucesso pessoal e profissional. Isso fez com que também se afastasse de seus pais de forma gradativa. Eles provavelmente ainda viviam no sítio, mas aquela vida era pacata demais para o jovem que havia ganhado o mundo. O Juca sonhador deu lugar ao prático e calculista José Carlos, importante executivo de uma empresa consolidada no mercado.
       José Carlos, além de não mais ter notícias de seus pais, parou de contemplar e de sonhar com as coisas mais simples. Nunca estava satisfeito com o que tinha. Queria sempre mais. Estava cada vez mais preso a prazos, horários e a uma rotina impecavelmente organizada. Não podia falhar, em hipótese alguma. Não havia tempo para consertar eventuais falhas, nem para cultivar as amizades ou construir um amor sólido ao lado de alguém. Atraía muitas pessoas dispostas a isso, mulheres e homens com quem esbarrava nos corredores da empresa, mas se limitava a relações superficiais e efêmeras – a maioria fomentada por algum tipo de interesse –, tão somente para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Não dispunha de muitas horas vagas e nem de paciência para conhecer alguém em profundidade e para conquistar eventuais pretendentes.
       O terno não podia estar sujo ou amassado, e os sapatos não ficavam sem graxa. A barba, sempre bem feita. A opinião dos outros era cada vez mais importante - não podia decepcionar a ninguém, tinha que corresponder a todas as expectativas e ainda mais: era preciso surpreender, sempre. Não podia extravasar demais, tampouco se mostrar deveras introspectivo. Sempre equilibrado, esse era o foco. Sóbrio, racional, discreto, ponderado. Chato. Eterno frustrado. Escravo da aprovação alheia, da mesmice e, sobretudo, do dinheiro. Como um vaga-lume sufocado, José perdia pouco a pouco a sua luz própria, e só ele não percebia. Estava imerso em trevas.
       E assim ele continuou, enquanto pode. Até o dia em que, saturado de obrigações, seu coração não suportou tanta pressão. Foi conduzido às pressas ao hospital mais próximo. Na fria maca sobre a qual repousava, José viu imagens dos momentos que viveu, dos mais recentes aos mais remotos. Naquele instante, toda a sua vida passou diante de seus olhos, de trás para frente, como num filme exibido ao contrário. Regressou ao seu passado. Por alguns segundos, José tornou-se Juca novamente. Sentia-se, outra vez, o menino sonhador que se contentava com alguns vaga-lumes piscando dentro de um pote de vidro. Havia mais tempo para sonhar? Sabia que não, e caiu em si. Sua realidade já era outra; seu corpo era outro, e perecia. Por mais que quisesse voltar no tempo e resgatar para si a infância feliz, todo o dinheiro que havia angariado nos últimos anos não seria capaz de realizar o seu desejo. Nenhum dos colegas de trabalho iria lhe oferecer ajuda; certamente estavam mais preocupados com a situação de suas contas bancárias.
       Lembrou-se dos pais. Adoraria que segurassem sua mão naquele momento e que cuidassem dele, como fizeram quando padeceu de catapora; mas Florinda e Joaquim não estavam mais ali. Eis que depois de tantos anos Juca entendia, enfim, que “quando a gente não é livre, vai perdendo a luz própria, até parar de brilhar de vez”. Era mais ou menos isso que o pai repetiu por diversas vezes durante sua infância. Sua luz se esvaía. E de que adiantava, afinal, ser um homem bem sucedido aos olhos dos outros, se para si mesmo estava apagado? De súbito, porém, voltou a se alegrar quando percebeu que outra luz invadiu o quarto de hospital em que repousava. Uma luz deveras forte e misteriosa, distinta de tudo o que havia visto até então, e que rapidamente se expandiu pelo cômodo. Ela o envolvia e acalentava como o toque gentil das mãos de seus pais, que há muito não sentia. Não sabia de onde vinha toda aquela claridade, mas estava disposto e pronto para entregar-se, diante da estranha convicção de que voltaria a brilhar quando se tornasse parte dela. Dessa vez, iria sem sua redinha e seu pote de vidro; estava de mãos vazias, sem desejo de aprisionar. No peito, uma única vontade: ser verdadeiramente livre. Assim, a felicidade também viria.
       Seria aquela a luz de infinitos vaga-lumes? Isso só o Juca iria descobrir.