quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A Pérola Negra e o Marfim




Você não precisa passar fome para que se incomode com a desigualdade social e a consequente marginalização dos menos favorecidos. Da mesma maneira, não é necessário ser negro para ser contra o racismo, nem ser homossexual para se mostrar contrário à homofobia. Também não precisa ser uma mulher para repudiar o machismo. Para ser contra qualquer forma de preconceito, portanto, não é necessário ter sido ou tornar-se uma vítima direta dele. Você só precisa reconhecer que ele existe e ser detentor(a) de um pingo de senso de humanidade.


     Catarina, uma garota que apesar da pouca idade já demonstrava sede de viver, levava sempre consigo um sorriso de gente grande, generoso e inconfundível. Trazia nos olhos o brilho de uma alma inocente, preparada para amar sem moderação. Sua família não tinha dinheiro de sobra, mas sempre viveram com conforto e muita dignidade.
     Não era uma “moreninha”, como muitos costumavam dizer, como se este fosse um termo mais agradável aos seus ouvidos. Era negra, isso sim - e negra com orgulho! Reconhecia seu devido valor, bem como a relevância, a contribuição e os sacrifícios inegáveis dos seus antepassados para a formação da sociedade plural em que se via inserida. Por todos esses motivos, jamais negaria suas origens. Jamais menosprezaria a cor da sua pele. E razões para se orgulhar não lhe faltavam: a genética tinha produzido uma joia.
     Os traços fortes e exuberantes da sua face compunham um todo simétrico e harmônico. A meiguice dos seus gestos, a delicadeza ao andar e a intensidade do seu olhar eram o prenúncio da mulher encantadora que se tornaria. Tratava-se de uma verdadeira pérola negra.
     Logo que ingressou na adolescência, Catarina conheceu Alberto. O acaso conspirou para que fossem matriculados em uma mesma turma da escola. Ele, descendente de alemães, nasceu rodeado pelo luxo e acostumou-se a ter tudo o que queria antes mesmo de conseguir expressar em palavras a sua vontade. Era alto, loiro, branco. Branco como o marfim. Após poucos dias de aula, tornou-se o centro das atenções de um grupo de meninas da classe. Entretanto, foram a indiferença e a beleza generosa de Catarina que despertaram seu real interesse.
     O primeiro passo foi aproximar-se nos intervalos das aulas para conversar sobre matérias, colegas e professores. Depois de alguns dias, já se prontificava a carregar os materiais da garota e a acompanhá-la até a porta de casa. Estava apaixonado, sem volta. Após alguns meses de convívio e declarações recíprocas, ambos resolveram assumir o namoro.
     Pareciam feitos um para o outro: a mistura perfeita, peles que se complementavam, como Yin e Yang. Sol e lua, dia e noite, branco e preto; um casal de encher os olhos. Como mandava o protocolo, era chegado o momento de um conhecer a família do outro. Todos ansiosos: os dois apaixonados e seus pais. Assim, na data convencionada Alberto entrou na sala da sua requintada casa, de mãos dadas com Catarina.
     Os pais do garoto, ao examinarem da cabeça aos pés a sua tão famigerada namorada, não demonstraram qualquer empolgação. Pareciam incomodados, na verdade. Almoçaram todos juntos, sobre a mesma mesa, mas com um clima notoriamente tenso pairando no ambiente. A menina estava se sentindo deslocada, incomodada com o silêncio dos pais de Alberto e com os olhares que deles recebia. Bocas fechadas, mas olhos expressivos, que falavam por si. Olhos de desconforto, de reprovação, de aversão... de preconceito.
     Quando a sós, Catarina tentou desabafar com Alberto, que se esforçava para evitar o assunto. Tudo para não entristecê-la. Com o passar dos dias, entretanto, ela comprovou suas suspeitas por conta própria: surpreendeu-se ao ouvir adjetivos diversos sussurrados em outros cômodos, em alguns dos momentos em que se encontrava na casa do seu amor.
     “Escurinha”, “favelada”, “neguinha”... palavras banhadas em aversão povoavam as conversas que os pais do namorado tinham entre si, sem se preocuparem em controlar o tom de voz.  E por inúmeras vezes, procurando a amada depois de estranhar seu sumiço, Alberto a encontrou encolhida no chão, com a cabeça apoiada nas pernas e a face inundada. Lágrimas que nem pela tranquilidade dele a garota conseguia conter. Lágrimas de quem se sentia menosprezada por algo que era inerente à sua pessoa, que era parte da sua identidade, portanto impossível de mudar; e que nem deveria mudar, uma vez que não a fazia melhor ou pior que ninguém. Eram como lágrimas de sangue, do mesmo sangue de tantos outros negros que fora historicamente derramado ao redor do mundo.
     Catarina sentia, pela primeira vez e na própria pele, a dor lancinante do preconceito. Notava, então, que ser negra a tornava inferior aos olhos injustos e cruéis de alguns; mais do que isso, percebia que para estes a sua cor a tornava desqualificada para se relacionar com um garoto branco.
     Alberto estava completamente dividido. De um lado, o olhar outrora intenso da amada, agora perdido, sem brilho, vazio e encharcado. Do outro, a sua família, pressionando para que terminasse o namoro e abandonasse a garota. Porque ele encontraria qualquer menina que desejasse, alguma que fosse mais “compatível e apta a fazê-lo feliz”, como os pais costumavam dizer, ignorando que Catarina já conseguia fazê-lo transbordar de felicidade. Ameaçaram inclusive suspender qualquer auxílio financeiro para o filho, enquanto ele não colocasse um ponto final em seu relacionamento.
     E em dias que se seguiram, Catarina notou com enorme pesar o seu namorado cada vez mais distante. O garoto não tomava qualquer atitude, evitava tocar no assunto, parecia fazer vista grossa para o sofrimento que ela transpirava. Ele começou a faltar às aulas, aparecendo vez ou outra; procurava-a menos, demonstrava menos afeto... até o dia em que sumiu, definitivamente.
     Já com um mau pressentimento, a abatida garota criou coragem para fazer algo que há muito se recusava: voltou à casa de Alberto, para saber qual era a razão do sumiço do amado. Quem a atendeu foi a empregada, que trazia consigo um envelope e o entregou à menina aflita por respostas. Catarina, pressentindo o teor do que estava no envelope, agradeceu à empregada e virou-se, iniciando o retorno para casa. Com o coração disparado e ainda sem coragem para abrir a carta, sentou-se em um dos bancos da praça; no banco em que costumava sentar-se para trocar carícias por horas a fio com Alberto.
     Ansiando por encerrar logo a angústia que a consumia, abriu o envelope e encontrou uma mensagem, indubitavelmente escrita de próprio punho pelo seu amor. Nela, o garoto pedia para que jamais se esquecesse de todos os momentos mágicos que passaram juntos; reiterava por diversas vezes que ela tinha conquistado sua admiração, seu carinho, seu amor. Explicava que a família não aprovava aquela relação, impondo um afastamento que ele não desejava; todavia, não tinha forças suficientes para enfrentar as ordens de seus pais, tampouco para ver as lágrimas da sua amada frente à rejeição e menosprezo com que a tratavam. Ele não queria se posicionar a favor de um lado ou do outro. Eram amores distintos em confronto. Assumiu ser covarde, ainda dependente do auxílio material familiar, o que lhe orientava a respeitar a vontade dos pais. Confessou ter chorado enquanto redigia a carta, mas nem precisaria fazer tal consideração: em algumas palavras havia borrões, manchas sobre a tinta azul da caneta. Eram evidentemente os pontos em que as lágrimas caíram e mancharam o que estava escrito. Por fim, pedia perdão por ter saído da vida da amada de maneira tão repentina, supostamente desejando que ela encontrasse outro alguém que tivesse a coragem necessária para fazê-la feliz.
     Alberto tinha se mudado. Fora morar com uma tia em outra cidade, transferido para outro colégio. O marfim tinha virado pó, que o vento levou. Catarina estava só. Foi então a sua vez de chorar, de encharcar a carta. A princípio, sentiu raiva de Alberto. Raiva da sua inércia, da sua covardia. Questionou a veracidade do amor que ele dizia sentir, perguntou-se se não haveria algum outro motivo para a partida inesperada do namorado. Não conseguia entender, não fazia sentido; não naquele momento. Não conseguiria também perdoá-lo de imediato; não enquanto sentisse aquela dor aguda no peito ao se lembrar de todas as juras de amor, de todos os planos traçados em conjunto, e que agora pareciam meras palavras vazias jogadas ao vento.
     Revoltou-se também contra os pais do garoto – criaturas vis, pequenas, limitadas. Incapazes de permitir que o próprio filho fosse feliz! Estavam cegos pelo preconceito, não se permitiam ver a beleza que há em cada ser humano, independentemente de suas características físicas. Talvez notassem toda a doçura e profundidade de Catarina, se ao menos deixassem que a garota mostrasse os valores e qualidades que trazia em si. Mas não, ela não teve tempo para isso, já que de imediato a menosprezaram, diminuíram, prejudicaram – tudo pelo fato de ser negra. Não tinham argumentos válidos, razões verdadeiras para pretenderem afastar os dois namorados.
     Branco e negro não podem se misturar? Quem disse isso? Quem teria direito a julgar a vida e os sentimentos alheios? Quem em sã consciência ousaria deslegitimar o amor sincero entre duas pessoas, analisando de longe, e pautando-se em meras características superficiais dos que se amam – características essas que não fazem um inferior ao outro? Quem se presta a esse papel certamente ainda não conheceu o verdadeiro amor. Enchem a boca para falar que o mundo precisa disso, de mais amor, mas não o conhecem, não o respeitam.
     Tiraram de Catarina uma parte de seu encantamento pelo mundo; mostraram-na como as pessoas, quando pouco esclarecidas, podem ser insensatas, cruéis, extremamente preconceituosas. Tiraram-na também a oportunidade ímpar de viver uma história de amor puro e verdadeiro por conta da cor da sua pele – o que não deve, jamais, ser fator determinante do tratamento que se confere a outra pessoa. Somos distintos apenas em aparência, o que é perfeitamente natural; enquanto semelhantes em essência, entretanto, deveríamos estar todos caminhando lado a lado, e não menosprezando ou desfavorecendo alguns com base em características que fazem parte da sua identidade e não os tornam menos gente.
     O coração da bela garota negra estava marcado com profundas feridas; o tempo as cicatrizaria, bem como traria o perdão que Alberto pediu na carta. Entretanto, a memória não permitiria que se esquecesse de que há muitas pessoas vazias, prepotentes e mal resolvidas consigo mesmas, a ponto de ousarem interferir nos sentimentos alheios e de se julgarem superiores às outras. Disso não poderia se esquecer; é questão de sobrevivência em meio a um mundo que muitas vezes se mostra hostil e desigual.
     Teria Catarina a sorte de encontrar um novo amor, tão intenso quanto o que conheceu em seus dias com Alberto? Deixariam, enfim, que vivesse uma história intensa e feliz com quem viesse a se envolver emocionalmente? Eram essas mesmas perguntas que ela se fazia naquele instante, ao perceber-se sozinha, abandonada, tendo seu amor suprimido pelo preconceito alheio.

(CONTINUA)...

* Em tempo: neste e em todos os dias, enquanto eu viver, emanarei meu reconhecimento, apoio e aplausos aos negros e a todas as pessoas que se veem marginalizadas neste mundo ainda injusto e desigual. Aos que lidam com bullying, com preconceito, com desigualdade ou com qualquer outro tormento por conta do que quer que seja, e que mesmo assim se mantêm firmes, arriscando um sorriso aqui e ali: não desistam! Danem-se os julgamentos, concepções e ofensas alheias, de quem nada soma às suas vidas; preocupem-se apenas com a voz da sua consciência. Não se condenem, não se agridam, não neguem os impulsos e peculiaridades que suas respectivas identidades lhes impõem a manifestar nesta breve existência. A beleza do mundo está justamente na pluralidade, na diversidade – o que permite que eventualmente um alguém complemente outro alguém.