sábado, 6 de setembro de 2014

A Maldade Está Online

 

"Moleza mandar a tropa atacar
Da tela do computador

Sem o cheiro
Sem o som
Sem ter nunca estado lá
Sem ter que voltar pra ver o que restou

Com a coragem que a distância dá
Em outro tempo em outro lugar
Fica mais fácil".

- Trecho da música "Coração Blindado", dos Engenheiros do Hawaii

 

 

       Eu procuro concentrar sempre as minhas atenções em tudo o que ainda há de bom por aí: nas pessoas de coração genuinamente bom, que se voluntariam a levar sorrisos por onde passam, que disseminam com autenticidade o amor e que levam ao pé da letra o “fazer o Bem sem olhar a quem”. Isso ainda existe, ao contrário do que tentam nos convencer os pessimistas em suas generalizações negativas. Mas também não é o momento de nos contentarmos com a realidade em que estamos inseridos; ainda há muita coisa a ser mudada – a humanidade caminha, e não cabe a mim a tarefa de julgar se é a passos lentos ou não; no entanto, se existe uma linha de chegada no processo de evolução da espécie humana, ela definitivamente não está logo ali, depois da próxima esquina. Para comprovar isso, basta ter acesso à internet. Basta navegar pelas redes sociais para se certificar de que, mesmo a essa altura do campeonato, ainda há gente que dedica parte do seu tempo a propagar o ódio, a ofender e inferiorizar o outro, destilando venenos rápidos e com grande potencial destrutivo.
      A inclusão digital traz avanços incontestáveis à qualidade de vida das pessoas, mas evidencia muitas de suas fraquezas, preconceitos e demais mazelas existenciais. Não estou, com estas modestas palavras, sustentando o maniqueísmo; sem essa de que “ou as pessoas são boas, ou são más”. Francamente, somos bem mais complexos do que isso. Peço licença a Shakespeare, onde estiver, para adaptar os dizeres de Hamlet e ressaltar que há mais mistérios entre o Bem e o Mal do que pode supor nossa vã filosofia. Mas ambos existem, e a maldade... ah, esta por vezes ainda me impressiona.

      Nesta última Copa do Mundo, a “Copa das Copas”, que se realizou aqui no Brasil, o bode expiatório da vez foi a torcedora alemã Ulrike Neumann. Na primeira parte de um “meme” (essas imagens supostamente engraçadas que tornam-se virais nas redes sociais, sendo compartilhadas rapidamente por inúmeras pessoas), ela aparecia com o rosto parcialmente tapado pela própria mão e tinha sua beleza elogiada, mas, num segundo momento, ao evidenciar toda a face, virou piada por aparentemente não ser de fato o ideal de beleza dos que a analisaram. A mulher não estava em um concurso de beleza; repito: estava em um estádio, torcendo em anonimato, e de repente tornou-se alvo de deboche a nível nacional. Tudo por conta de sua aparência.
      Não podemos nos esquecer de que o ideal de beleza é deveras relativo. O belo não se define, depende de quem contempla. Afirmar isso não é cair em clichês, é ser honesto. Ademais, eu mesmo não vi razão (muito menos graça) para o tal “meme” – a alemã era, em minha opinião, mais bonita que muita gente que compartilhou e riu da sua imagem, inclusive.
      A exposição da torcedora naquele momento já me causou desconforto; por mais que não tenha me manifestado oportunamente, cheguei a imaginar a minha imagem propagada sem meu consentimento para fins depreciativos e fiquei incomodado. Senti um ligeiro desconforto decorrente de algo que certamente lhe causou dor e marcas profundas, mas senti. Porque hoje você não precisa sequer sair de casa pra ser exposto às gargalhadas e à maledicência alheia. Não por mero acaso, quem sabe, foi a vitória merecida da seleção para a qual Ulrike torcia na Copa, tímido afago para compensar tantas agressões gratuitas. Naquela ocasião, o meu balde de tolerância à imbecilidade de muitos já estava prestes a transbordar. Outros fatos lamentáveis sobrevieram, mas permitam-me avançar cronologicamente, pra que eu não perca credibilidade por remoer o passado.
      Mais recentemente, sobressaiu-me a notícia dos comentários racistas contra uma jovem negra que postou uma foto com o namorado, branco. Na cidade de Muriaé, aqui em Minas Gerais. Um casal muito bonito, e aparentemente bem feliz – o que, claro, despertou a inveja e o ódio alheio. Porque você pode até estar explodindo de felicidade, sim, mas deve pensar duas vezes antes de divulgá-la. Sua felicidade termina onde começa a de muitas pessoas – dentre elas, alguns dos seus “amigos”, caro(a) leitor(a), lamento lhe informar. Comentários criminosos (não estou sendo hiperbólico ao empregar esse termo, todo mundo sabe que injúria racial é crime) como “onde comprou essa escrava?”, “me vende ela” e “tipo assim tia eu acho que vc roubou o branco pra tirar foto”, dentre outros, postados por idiotas distintos, macularam a postagem da garota e, imagino eu, deixaram marcas que talvez nem a força implacável do Tempo tenha capacidade de apagar.
      No dia em que tomei conhecimento, eu achei o nível de crueldade desses comentários tão acentuado que eu supus de imediato tratar-se de um engodo, uma notícia “fake”. No fundo, era o que eu desejava; preferiria acreditar que gente de verdade não chegaria a esse extremo de torpeza. Não sei descrever o asco que senti ao comprovar a veracidade do absurdo. Sabe aquela história de vergonha alheia? Pois é, da mesma forma, mesmo não participando do showzinho de racismo, a gente se sente sujo por tabela, só por pertencer à mesma espécie de quem o conduziu. Entretanto, já entendi que nem todo mundo se importa.
      Impossível para essas pessoas que ofenderam Ulrike e o casal de Muriaé é nutrir empatia pelo outro, certamente. Os psicopatas estão aí, camuflados de boa gente, e não me deixam mentir. O engraçado é que, depois de destilarem suas doses do Mal propriamente dito, essas pessoas tranquilamente postam frases de efeito e “selfies” (fotos que tiram de si mesmas, normalmente defronte ao espelho) exaltando a própria imagem, valendo-se de recursos e aplicativos  para manipulação de imagens como o Photoshop e o Instagram, mas sem saberem que nenhum destes é capaz de ocultar toda a feiura e podridão que têm dentro de si.
      Quando da notícia do falecimento de Eduardo Campos, candidato à presidência da República pelo PSB nas eleições deste ano, que teve sua trajetória política e sua vida abruptamente interrompidas em um acidente aéreo, vi diversas postagens nas redes sociais de pessoas que ironicamente lamentavam o fato de o avião que caiu não ser o que transportava a atual presidente, Dilma Rousseff; outras desejavam que a vítima fosse Aécio Neves, o candidato do PSDB, e etc. Ainda que eu não simpatize com um ou outro candidato, achei essas manifestações virtuais deveras impróprias e deselegantes. A meu ver, com morte não se brinca, e uma fatalidade lamentável como a que vitimou Eduardo Campos é algo que não se deseja a ninguém, nem ao pior dos seres humanos. Brincadeira ou não, é estúpida; é possível se fazer graça sem cair no mau gosto. O que eu sempre me pergunto, quando me deparo com gente que brinca com o sofrimento alheio, é o seguinte: se um dos corpos encontrados no local do acidente fosse o de alguém de sua família e os internautas desrespeitassem seu luto e sua dor, postando supostas “brincadeirinhas” fazendo referência à tragédia, como se sentiriam? Decerto não ficariam felizes, e isso eu aposto.
      Enfim, para evitar maiores delongas, não me debruçarei sobre outros casos, como o da torcedora do Grêmio que chamou um goleiro de “macaco” durante uma partida de futebol há poucos dias. Os que apresentei são só exemplos de fatos repugnantes que me fizeram pensar em tudo isso, no quanto a maldade tem marcado presença nesses meios e se camuflado como sinônimo de graça e senso de humor. As pessoas se aproveitam do conforto de estarem distantes, recolhidas em seus lares e atrás de uma telinha para falar o que querem sem se preocupar com as consequências. Casos de meras ofensas a crimes motivados por racismo, machismo, homofobia e outras formas de preconceito se multiplicam a cada dia. Que não fiquem impunes, e que sobre eles recaia o devido rigor penal.
      Eis então meu apelo: não compactuem com tanta crueldade! Não disseminem o ódio, tomando cuidado com o chamado “humor negro”, consubstanciado geralmente em tentativas estúpidas de fazer graça à custa do sofrimento alheio.; não difundam o Mal, afinal, o exército da maldade aparentemente se torna mais numeroso a cada dia. Em vez disso, esclareçam as pessoas com quem convivem para que promovam o Bem na medida de suas possibilidades; transmitam exemplos de amor aos seus pais, filhos, irmãos, amigos... isso proporciona o travesseiro mais macio de que podemos dispor: uma consciência limpa.
      Por fim, peço que contribuam, então, para que não se produza mais de toda essa sujeira que está nos infectando aos poucos, e também para que ela não seja varrida para debaixo do tapete da hipocrisia. Em esforços conjuntos, a gente pode reciclá-la... e deve, porque, convenhamos: o tapete já não dá mais conta de esconder tanta porcariada.

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