domingo, 19 de abril de 2015

O Menino que Caçava Vaga-lumes



    


  Com apenas cinco aninhos, o pequeno Juca já se revelava um sonhador. Logo que a noite caía, saía correndo pelo vasto quintal do sítio em que morava com os pais, à caça de vaga-lumes mais desatentos. Numa das mãos, empunhava uma redinha costurada pela mãe, Florinda, e amarrada a uma haste de madeira; na outra, trazia o seu potinho, que outrora comportava a saborosa geleia de amora preparada pela avó Guilhermina. O frasco agora tinha outra finalidade: abrigar os vaga-lumes que o pequeno capturaria em suas jornadas noturnas.
       E Juca, tão novo, pensava em tudo: o fundo do pote era forrado com folhas verdinhas de diferentes plantas do quintal; afinal, pensava ele, aqueles vaga-lumes deviam comer pequenas folhas para sobreviver, como faziam tantos outros bichinhos. Não secava o recipiente após lavá-lo, para que os insetos pudessem beber as gotículas de água que restavam no vidro. Por fim, a tampa era furada com a ponta de um espeto em brasa, para que lhes fosse possível respirar lá dentro. Mas era o pai quem manuseava o ferro quente, porque “criança, além de não poder mexer com coisa pontuda, não pode brincar com fogo, senão faz xixi na cama”! Era o que o “Seu” Joaquim dizia. E Juca não teimava, porque morria de vergonha quando acordava com o colchão todo molhado sob seu corpo.
       O garoto não podia se afastar muito da velha casa, porque os pais ficavam preocupados e deixavam-no de castigo. No entanto, logo nas redondezas o pequenino já se satisfazia: havia por ali vaga-lumes para todos os gostos! E lá ia ele, correndo de um lado para o outro e balançando vigorosamente a sua redinha. Na hora de colocá-los dentro do frasco, destampava-o com todo o cuidado, para que os cativos não escapassem. Ficava profundamente irritado quando, ao tentar aprisionar um novo, os demais fugiam e saíam piscando livremente pelo ar. Os pais riam entre si, lamentando pelos vagalumes, pobres vítimas da recreação do filho. 

      Quando indagado sobre o porquê de fazer aquilo, o menino não titubeava: “porque eles são lindos, e eu quero cuidar deles para sempre, ora! Vou ter toda a luz do mundo aqui, dentro do meu potinho! Com esses vaga-lumes, não preciso mais ter medo do escuro, porque, mesmo que a luz acabe, eles irão brilhar para mim”. Sempre que falava isso, o pai lhe advertia de que o mais importante seria manter bem acesa a luz que havia dentro do seu pequeno coração. Porque, segundo o “Seu” Joaquim, quem tivesse luz dentro de si, jamais ficaria no escuro. Mas Juca era muito novo para compreender aquilo e tinha coisas mais importantes para se preocupar: capturar mais vagalumes. Quanto mais aprisionava, mais apareciam! Estavam desafiando sua persistência, mas ele era incansável. E o potinho reluzia cada vez mais, como uma lamparina viva, para a satisfação do pequeno sonhador. “Um lindo espetáculo!”, dizia a mamãe, enchendo-lhe de orgulho.
       A alegria de Juca, porém, não durava muito. Ele adormecia, passava-se algum tempo, e, quando procurava novamente o seu pote para retomar a caçada, percebia que os vaga-lumes não mais piscavam; os coitados sequer se mexiam! Estavam mortos. E aí se iniciava um longo pranto, motivado pela profunda frustração de perder, de forma repentina, algo que lhe era tão valioso. A mãe ficava com o coração partido. E o pai, sempre firme, explicava que com as pessoas poderia acontecer a mesma coisa que ocorria com os vaga-lumes de Juca. Porque “quando a gente se sente preso de alguma forma, a gente perde aos poucos a nossa luz. Ficamos cada vez mais fracos, apagados, até o momento em que paramos de brilhar”. Esse ensinamento também era complexo demais para o entendimento do filho, que preferia deixar para pensar naquilo depois. Ele não podia perder tempo com essas coisas de adultos, tinha mais o que fazer: encontrar novos vaga-lumes; uns bem grandes e brilhantes, para que suas luzes não se apagassem nunca! E assim recomeçava todo o ciclo, que se resumia a uma esperança que dava lugar a uma alegria passageira; esta, por sua vez, posteriormente substituída pela frustração.
       O tempo passou e Juca foi para a cidade grande, onde iniciou seus estudos e começou a trabalhar. Trocou a redinha e o potinho de outrora por lápis, caderno e ferramentas. Esqueceu-se dos vaga-lumes. E estudou muito, por longos anos, galgando cada vez mais degraus rumo ao que ele concebia como seu sucesso pessoal e profissional. Isso fez com que também se afastasse de seus pais de forma gradativa. Eles provavelmente ainda viviam no sítio, mas aquela vida era pacata demais para o jovem que havia ganhado o mundo. O Juca sonhador deu lugar ao prático e calculista José Carlos, importante executivo de uma empresa consolidada no mercado.
       José Carlos, além de não mais ter notícias de seus pais, parou de contemplar e de sonhar com as coisas mais simples. Nunca estava satisfeito com o que tinha. Queria sempre mais. Estava cada vez mais preso a prazos, horários e a uma rotina impecavelmente organizada. Não podia falhar, em hipótese alguma. Não havia tempo para consertar eventuais falhas, nem para cultivar as amizades ou construir um amor sólido ao lado de alguém. Atraía muitas pessoas dispostas a isso, mulheres e homens com quem esbarrava nos corredores da empresa, mas se limitava a relações superficiais e efêmeras – a maioria fomentada por algum tipo de interesse –, tão somente para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Não dispunha de muitas horas vagas e nem de paciência para conhecer alguém em profundidade e para conquistar eventuais pretendentes.
       O terno não podia estar sujo ou amassado, e os sapatos não ficavam sem graxa. A barba, sempre bem feita. A opinião dos outros era cada vez mais importante - não podia decepcionar a ninguém, tinha que corresponder a todas as expectativas e ainda mais: era preciso surpreender, sempre. Não podia extravasar demais, tampouco se mostrar deveras introspectivo. Sempre equilibrado, esse era o foco. Sóbrio, racional, discreto, ponderado. Chato. Eterno frustrado. Escravo da aprovação alheia, da mesmice e, sobretudo, do dinheiro. Como um vaga-lume sufocado, José perdia pouco a pouco a sua luz própria, e só ele não percebia. Estava imerso em trevas.
       E assim ele continuou, enquanto pode. Até o dia em que, saturado de obrigações, seu coração não suportou tanta pressão. Foi conduzido às pressas ao hospital mais próximo. Na fria maca sobre a qual repousava, José viu imagens dos momentos que viveu, dos mais recentes aos mais remotos. Naquele instante, toda a sua vida passou diante de seus olhos, de trás para frente, como num filme exibido ao contrário. Regressou ao seu passado. Por alguns segundos, José tornou-se Juca novamente. Sentia-se, outra vez, o menino sonhador que se contentava com alguns vaga-lumes piscando dentro de um pote de vidro. Havia mais tempo para sonhar? Sabia que não, e caiu em si. Sua realidade já era outra; seu corpo era outro, e perecia. Por mais que quisesse voltar no tempo e resgatar para si a infância feliz, todo o dinheiro que havia angariado nos últimos anos não seria capaz de realizar o seu desejo. Nenhum dos colegas de trabalho iria lhe oferecer ajuda; certamente estavam mais preocupados com a situação de suas contas bancárias.
       Lembrou-se dos pais. Adoraria que segurassem sua mão naquele momento e que cuidassem dele, como fizeram quando padeceu de catapora; mas Florinda e Joaquim não estavam mais ali. Eis que depois de tantos anos Juca entendia, enfim, que “quando a gente não é livre, vai perdendo a luz própria, até parar de brilhar de vez”. Era mais ou menos isso que o pai repetiu por diversas vezes durante sua infância. Sua luz se esvaía. E de que adiantava, afinal, ser um homem bem sucedido aos olhos dos outros, se para si mesmo estava apagado? De súbito, porém, voltou a se alegrar quando percebeu que outra luz invadiu o quarto de hospital em que repousava. Uma luz deveras forte e misteriosa, distinta de tudo o que havia visto até então, e que rapidamente se expandiu pelo cômodo. Ela o envolvia e acalentava como o toque gentil das mãos de seus pais, que há muito não sentia. Não sabia de onde vinha toda aquela claridade, mas estava disposto e pronto para entregar-se, diante da estranha convicção de que voltaria a brilhar quando se tornasse parte dela. Dessa vez, iria sem sua redinha e seu pote de vidro; estava de mãos vazias, sem desejo de aprisionar. No peito, uma única vontade: ser verdadeiramente livre. Assim, a felicidade também viria.
       Seria aquela a luz de infinitos vaga-lumes? Isso só o Juca iria descobrir.