sexta-feira, 19 de julho de 2013

Sonhar: Um Prazer Gratuito dos Mortais



"Sonhar é acordar-se para dentro."
                         -
"Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
"
                                                     - Mário Quintana




    


     Depois de um dia deveras exaustivo, troco de roupa e caminho até a cama, com o peso do mundo nas costas. Levanto o edredom, ajeito o travesseiro e finalmente me deito, entregando-me por completo ao conforto do colchão. É um prazer inenarrável poder render-se à cama após um longo dia de muitos desgastes. Fecho os olhos, sinto-me leve; a partir daí, tem início uma viagem imprevisível para um mundo de infinitas possibilidades.
      Há quem acredite que os sonhos são muito mais que meras fantasias criadas por nossa mente durante o repouso. Segundo os que assim pensam, talvez tudo o que sonhamos esteja realmente acontecendo em outro plano, constituindo uma realidade paralela, uma outra vida que se encaminha naquele momento em local diverso. Da mesma forma, talvez o que vivemos aqui e agora seja apenas um sonho, no qual a morte representaria o despertar. Talvez. Verdade ou não, trata-se de um universo fascinante, que detém minha admiração desde cedo.
      Sonhar é uma das maiores dádivas das quais podemos dispor no desenrolar da nossa mortalidade. Conhecemos pessoas e lugares que talvez sequer existam, realizamos fantasias inconfessáveis e distantes das nossas reais possibilidades, somos o que nossa imaginação nos permitir. Assim, adormecer significa entregar-se ao inusitado, mergulhar de corpo e alma em um novo mistério que se encerra com o despertar.
      Trata-se, todavia, de uma viagem arriscada, como tudo que é capaz de nos proporcionar prazer nesta vida. Podemos ficar temporariamente presos em cenas que dariam perfeitos roteiros de filmes de terror: os pesadelos. Vivenciamos, ainda que em um curto espaço de tempo, situações de extrema aflição, ficando cara a cara com alguns dos nossos maiores medos. É certo, porém, que sempre há alguém em especial que, desde que nos visite enquanto dormimos, transforma qualquer pesadelo em um sonho inesquecível.
      Assim, quando finalmente adormeci naquele momento, sonhei que procurava nas margens barrentas de um rio furioso algumas pedras mais brilhantes, daquelas que não passam despercebidas aos olhares mais atentos. E passei dias e dias procurando, em um sonho que se repete por diversas noites e parece não ter fim. Ainda estou à procura, sempre me deparando com algumas pelo caminho. Umas são cacos de vidro ou quaisquer outros materiais que brilham timidamente e não têm valor significativo, ilusões temporárias; há outras que são mais brilhantes, sem dúvidas, mas que ainda não me cativaram a ponto de desejar lapidá-las e carregá-las comigo.
      Chegará o dia, enfim, em que já cansado da procura encontrarei, em mais um destes sonhos, uma pedra diferente, joia lapidada por si só e de valor humanamente inestimável. Minhas lágrimas molharão a areia daquilo que outrora fora o rio, já seco a essa altura da vida. Guardarei aquela pequena pedra em um dos bolsos e desaparecerei no horizonte, com uma alegria incomparável.
      E quando finalmente os passarinhos cantarem lá fora, anunciando a chegada de um novo dia, despertarei e abrirei os olhos, percebendo que o sonho chegou ao fim. Esbanjarei, então, um sorriso do tamanho de tal sonho, ao me certificar de que ele, na verdade, não acabou: minha joia preciosa, encontrada depois de anos em meio a todo aquele barro, estará dormindo despretensiosamente ao meu lado.

      Porque muitos sonhos podem, sim, tornar-se realidade. Portanto, feche os olhos e se permita sonhar cada vez mais!



domingo, 14 de julho de 2013

Os Ecos da Selva de Pedra



"Os sentimentos mais genuinamente humanos logo se desumanizam na cidade."
                                                                                                                                   - Eça de Queiroz



      Caminho pelas ruas da grande cidade com olhar intensamente contemplativo, ansiando enxergar além das assustadoras aparências.  Não encontro maiores dificuldades, já que as pessoas, sempre apressadas para satisfazerem seus desejos egoístas, não me notam em meio à multidão. Assim, ninguém me interrompe em meu trajeto - sequer notam minha presença! Território mais hostil não há. Construções cada vez maiores nos reduzem à insignificância neste cenário frio, cinza, e a poluição leva à chuva ácida que corrói com ferocidade a alma humana.
     As pessoas parecem não viver; apenas existem. Mostram os dentes, mas não sorriem. Produzem lágrimas, mas não choram. Perdem a oportunidade de desfrutar do infinito prazer que reside nas coisas mais simples enquanto se preocupam com aparências e buscam um futuro melhor que nunca chega. Eternos insatisfeitos, têm a frustração estampada em seus semblantes cansados. Carregam nas bolsas pequenas doses de felicidade artificial, em comprimidos que prometem milagres. Por que dizer que seremos substituídos por máquinas no futuro, se o fato é que só vejo gente que vive mecanicamente seus limitados dias? Talvez o futuro já tenha chegado.
      Ao longo da caminhada, encontro um senhor deitado em plena calçada, áspera e fria. Ali se encontra por não ter um teto sob o qual se esconder. Os transeuntes, apressados, não o percebem. É um homem invisível. Sinto que parte de mim fica ali, com aquele senhor. Parte dos meus sentimentos, dos meus pensamentos, não sei ao certo. Só sei que não estou inteiro depois de vê-lo em tais condições. Mais à frente um garoto, extremamente jovem, pede ajuda para comprar comida. Também não tem casa, não tem família, não vai à escola... só tem a rua. Impossível ser indiferente, inevitável deixar parte de mim também com esse garoto.
      Em outro ponto, um jovem cai ao chão, com um rombo no peito deixado por uma bala, que de perdida nada tinha. Era destinada a quem não pagasse as dívidas contraídas com o tráfico. A alguns quarteirões, uma menina é violentada. Tiram-lhe a inocência, a candura e os sorrisos para satisfação de desejos patológicos, ignorando suas súplicas banhadas em lágrimas. Em cada casa, há um negro discriminado, um homossexual vítima do preconceito alheio, uma mulher covardemente agredida em surtos de machismo e uma criança que, presenciando tudo isso, absorve princípios egoístas e intolerantes, demonstrando tendências agressivas. Desta cidade emanam-se gritos que ninguém ouve. E com todos os que gritam, deixo um pedaço de mim; meus sinceros sentimentos, um pouco da minha força de vida, talvez.
     Ao fim do percurso, sou um nada. De pedaço em pedaço, virei pó.  Fiquei pelas ruas, com tudo o que vi. Afinal, é isso que somos diante dessa imensidão devoradora das selvas de pedra: puro pó. Que mundo é esse, em que não nos destacamos da mera poeira das ruas mais imundas?



 

domingo, 7 de julho de 2013

O Último Dia do Inverno



"Vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele."
                                                                                                                                       -Victor Hugo



     Abriu as cortinas da sala de estar. Manhã de inverno, frio impiedoso lá fora - e dentro de si também. A ausência do seu amor agravava as baixas temperaturas, estava congelando lentamente. Talvez por isso não conseguisse mais derramar lágrimas: provavelmente já haviam se solidificado em algum lugar. Um mês, enfim, desde a partida do seu mais verdadeiro e intenso amor. Partida esta para um destino incerto, e sem qualquer possibilidade de retorno. Foi com a eterna despedida que seu inverno começou.
      Não mais sentia os raios solares ao abrir as cortinas; não mais ouvia a doce e singela orquestra ensaiada pelos pássaros todas as manhãs. Aquela casa nunca fora tão grande; o silêncio fazia eco em todos os cômodos, a cada dia mais vazios e escuros. Não tiveram filhos – não compartilhava desse desejo. Mas agora compreendia o receio do seu amor: não ter alguém para lhes fazer companhia em seus últimos dias. Teimou sempre, enfatizando que não tinha paciência para cuidar de crianças, e agora se via só, sem ter a quem deixar todo o patrimônio que construíram e as experiências que viveram. Tomou o pouco de coragem que lhe restava e rumou para o banheiro, a passos arrastados.
      Olhou-se no espelho e se espantou com o que viu: um rosto desfigurado pelo tempo e pela solidão. Rugas profundas denunciavam a idade. Teve rápidas lembranças de sua juventude, agora muito distante. Recordou-se de quando se juntava ao seu amor em banhos ousados e demorados, naquele mesmo banheiro. Entretanto, não mais se reconhecia naquele corpo. Tocou o espelho, tencionando sentir a própria pele no reflexo que se apresentava e acariciar aquele rosto digno de pena. Frustrada a sua tentativa, conformou-se e seguiu para o quarto.
      Contemplou a cama de casal, uma imensidão para apenas um corpo. Lembrou-se do livro preferido do seu amor, foi até o armário, abriu uma das gavetas e o retirou, muito empoeirado. Marcando uma das páginas estava a rosa que outrora lhe dera, seca como a própria pele. Mais à frente, noutra página, um papel dobrado, já amarelo: uma partitura – a “Moonlight Sonata”, de Beethoven. Era a música que seu amor costumava tocar quando precisava relaxar. Tomou para si a partitura e decidiu voltar para a sala.
      Aproximou-se do piano, sentou-se, posicionou a partitura, sentiu o teclado. Suspirou profundamente e então tentou reproduzir a melodia que seu amor costumava lhes proporcionar. Outra tentativa em vão: seus dedos, agora trêmulos, não dispunham da destreza necessária. Triste, reconheceu que o melhor a fazer era voltar para a cama. Não sentia fome, não sentia dores, nada sentia. Nada além de uma saudade devoradora, cruel, que o inverno e a solidão potencializavam.
      Agora na cama, olhou fixamente para o teto do quarto. Estava completamente só. Melhor assim, não notariam sua ausência. Poderia partir em busca do abraço que tanto lhe fazia falta sem causar sofrimento a outrem. Fechou as pálpebras. Depois de todos aqueles dias, foi a única vez em que uma lágrima tímida brotou de seus olhos. Repentinamente, começou a sentir o perfume do seu amor. Aquele doce perfume era inconfundível. Mesmo sem abrir os olhos, tinha certeza de que estava ali, cada vez mais perto, e não conteve o sorriso. Seu amor tinha vindo ao seu encontro. Rezou muito por isso, e finalmente poderia se reencontrar com quem mais lhe importava.
     Sem qualquer receio, deixou que o perfume guiasse sua mente. Sentiu o corpo leve, cada vez mais leve... até não mais senti-lo. Partiu, enfim, sem se levantar, com uma expressão plenamente serena e um leve sorriso no rosto; porque sabia que encontraria seu amor. Não sabia como, sequer imaginava onde, mas encontraria. Neste exato momento, talvez, já estejam se abraçando bem longe dali.