segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Impossível Despedida


"Ai de quem ama

Quanta tristeza
Há nesta vida
Só incerteza
Só despedida

 
Amar é triste
O que é que existe?
O amor

Ama, canta
Sofre tanta
Tanta saudade
Do seu carinho
Quanta saudade

Amar sozinho
Ai de quem ama
Vive dizendo
Adeus, adeus".

- Vinícius de Moraes.




Deitei o porta-retratos sobre a mesinha da sala
Aquele que continha teu sorriso estampado junto ao meu
Tencionando não mais sentir o desejo incontrolável
Que me acomete ao contemplar tua face perturbadora
Verdadeira obra de arte, objeto de meu máximo deleite

Delineada e esculpida por algum artista genial


Lavei todas as minhas roupas
Pretendendo tirar delas o teu perfume
Aquele aroma inconfundível que me embriagava
Nas inúmeras vezes em que te esfregavas sobre meu corpo entregue
E com carícias incessantes me fazias flertar com a loucura


Experimentei beijar outras bocas
Na tentativa vã de encontrar alguma que superasse teu gosto
E me fizesse esquecer de vez da doçura do néctar com que me brindavas
Daquele sabor inexplicável que neutralizava as amarguras do cotidiano
Enquanto minha língua dançava entrelaçada à tua


Apaguei o número do teu telefone
Porque estou certo de que ouvir novamente a tua voz
Melodia cadenciada que acelerava o ritmo do meu coração
Seria verdadeira tortura irresistível
Que me capturaria como um canto de sereia


Queria lacerar-me, arrancar a própria pele
Como uma serpente que se renova a cada ciclo
Para não mais ter recordações dos arrepios de outrora
Quando tuas mãos quentes e tua língua aventureira
De minha nudez e ingenuidade tanto se aproveitavam


Mas agora é tarde para o meu coração desenfreado
Pondero e constato, atônito
Que nada disso seria suficiente para te arrancar de minhas entranhas
Pois como o ferro superaquecido que deixa sinais permanentes no gado
Marcaste-me para sempre, além da pele


Tua imagem
Teu cheiro
Teu gosto
Tua voz
Teu toque
Nada disso ficou para trás


Quem ficou para trás fui eu
No entanto, apesar de todo o pranto
A despeito de teres me virado as costas

Ainda estás aqui
Presente em mim
Por toda a eternidade


Tu, que vieste sem avisar
Tu, que me roubaste o coração e a inocência
Para depois me deixares no escuro e sem respostas
Saibas que de mim o perdão jamais terás
Porque conseguiste muito mais do que isso
Muito mais do que eu deveria entregar

Tu, que vieste sem avisar
Tu, que sem pedires
Vieste pra ficar.


sábado, 6 de setembro de 2014

A Maldade Está Online

 

"Moleza mandar a tropa atacar
Da tela do computador

Sem o cheiro
Sem o som
Sem ter nunca estado lá
Sem ter que voltar pra ver o que restou

Com a coragem que a distância dá
Em outro tempo em outro lugar
Fica mais fácil".

- Trecho da música "Coração Blindado", dos Engenheiros do Hawaii

 

 

       Eu procuro concentrar sempre as minhas atenções em tudo o que ainda há de bom por aí: nas pessoas de coração genuinamente bom, que se voluntariam a levar sorrisos por onde passam, que disseminam com autenticidade o amor e que levam ao pé da letra o “fazer o Bem sem olhar a quem”. Isso ainda existe, ao contrário do que tentam nos convencer os pessimistas em suas generalizações negativas. Mas também não é o momento de nos contentarmos com a realidade em que estamos inseridos; ainda há muita coisa a ser mudada – a humanidade caminha, e não cabe a mim a tarefa de julgar se é a passos lentos ou não; no entanto, se existe uma linha de chegada no processo de evolução da espécie humana, ela definitivamente não está logo ali, depois da próxima esquina. Para comprovar isso, basta ter acesso à internet. Basta navegar pelas redes sociais para se certificar de que, mesmo a essa altura do campeonato, ainda há gente que dedica parte do seu tempo a propagar o ódio, a ofender e inferiorizar o outro, destilando venenos rápidos e com grande potencial destrutivo.
      A inclusão digital traz avanços incontestáveis à qualidade de vida das pessoas, mas evidencia muitas de suas fraquezas, preconceitos e demais mazelas existenciais. Não estou, com estas modestas palavras, sustentando o maniqueísmo; sem essa de que “ou as pessoas são boas, ou são más”. Francamente, somos bem mais complexos do que isso. Peço licença a Shakespeare, onde estiver, para adaptar os dizeres de Hamlet e ressaltar que há mais mistérios entre o Bem e o Mal do que pode supor nossa vã filosofia. Mas ambos existem, e a maldade... ah, esta por vezes ainda me impressiona.

      Nesta última Copa do Mundo, a “Copa das Copas”, que se realizou aqui no Brasil, o bode expiatório da vez foi a torcedora alemã Ulrike Neumann. Na primeira parte de um “meme” (essas imagens supostamente engraçadas que tornam-se virais nas redes sociais, sendo compartilhadas rapidamente por inúmeras pessoas), ela aparecia com o rosto parcialmente tapado pela própria mão e tinha sua beleza elogiada, mas, num segundo momento, ao evidenciar toda a face, virou piada por aparentemente não ser de fato o ideal de beleza dos que a analisaram. A mulher não estava em um concurso de beleza; repito: estava em um estádio, torcendo em anonimato, e de repente tornou-se alvo de deboche a nível nacional. Tudo por conta de sua aparência.
      Não podemos nos esquecer de que o ideal de beleza é deveras relativo. O belo não se define, depende de quem contempla. Afirmar isso não é cair em clichês, é ser honesto. Ademais, eu mesmo não vi razão (muito menos graça) para o tal “meme” – a alemã era, em minha opinião, mais bonita que muita gente que compartilhou e riu da sua imagem, inclusive.
      A exposição da torcedora naquele momento já me causou desconforto; por mais que não tenha me manifestado oportunamente, cheguei a imaginar a minha imagem propagada sem meu consentimento para fins depreciativos e fiquei incomodado. Senti um ligeiro desconforto decorrente de algo que certamente lhe causou dor e marcas profundas, mas senti. Porque hoje você não precisa sequer sair de casa pra ser exposto às gargalhadas e à maledicência alheia. Não por mero acaso, quem sabe, foi a vitória merecida da seleção para a qual Ulrike torcia na Copa, tímido afago para compensar tantas agressões gratuitas. Naquela ocasião, o meu balde de tolerância à imbecilidade de muitos já estava prestes a transbordar. Outros fatos lamentáveis sobrevieram, mas permitam-me avançar cronologicamente, pra que eu não perca credibilidade por remoer o passado.
      Mais recentemente, sobressaiu-me a notícia dos comentários racistas contra uma jovem negra que postou uma foto com o namorado, branco. Na cidade de Muriaé, aqui em Minas Gerais. Um casal muito bonito, e aparentemente bem feliz – o que, claro, despertou a inveja e o ódio alheio. Porque você pode até estar explodindo de felicidade, sim, mas deve pensar duas vezes antes de divulgá-la. Sua felicidade termina onde começa a de muitas pessoas – dentre elas, alguns dos seus “amigos”, caro(a) leitor(a), lamento lhe informar. Comentários criminosos (não estou sendo hiperbólico ao empregar esse termo, todo mundo sabe que injúria racial é crime) como “onde comprou essa escrava?”, “me vende ela” e “tipo assim tia eu acho que vc roubou o branco pra tirar foto”, dentre outros, postados por idiotas distintos, macularam a postagem da garota e, imagino eu, deixaram marcas que talvez nem a força implacável do Tempo tenha capacidade de apagar.
      No dia em que tomei conhecimento, eu achei o nível de crueldade desses comentários tão acentuado que eu supus de imediato tratar-se de um engodo, uma notícia “fake”. No fundo, era o que eu desejava; preferiria acreditar que gente de verdade não chegaria a esse extremo de torpeza. Não sei descrever o asco que senti ao comprovar a veracidade do absurdo. Sabe aquela história de vergonha alheia? Pois é, da mesma forma, mesmo não participando do showzinho de racismo, a gente se sente sujo por tabela, só por pertencer à mesma espécie de quem o conduziu. Entretanto, já entendi que nem todo mundo se importa.
      Impossível para essas pessoas que ofenderam Ulrike e o casal de Muriaé é nutrir empatia pelo outro, certamente. Os psicopatas estão aí, camuflados de boa gente, e não me deixam mentir. O engraçado é que, depois de destilarem suas doses do Mal propriamente dito, essas pessoas tranquilamente postam frases de efeito e “selfies” (fotos que tiram de si mesmas, normalmente defronte ao espelho) exaltando a própria imagem, valendo-se de recursos e aplicativos  para manipulação de imagens como o Photoshop e o Instagram, mas sem saberem que nenhum destes é capaz de ocultar toda a feiura e podridão que têm dentro de si.
      Quando da notícia do falecimento de Eduardo Campos, candidato à presidência da República pelo PSB nas eleições deste ano, que teve sua trajetória política e sua vida abruptamente interrompidas em um acidente aéreo, vi diversas postagens nas redes sociais de pessoas que ironicamente lamentavam o fato de o avião que caiu não ser o que transportava a atual presidente, Dilma Rousseff; outras desejavam que a vítima fosse Aécio Neves, o candidato do PSDB, e etc. Ainda que eu não simpatize com um ou outro candidato, achei essas manifestações virtuais deveras impróprias e deselegantes. A meu ver, com morte não se brinca, e uma fatalidade lamentável como a que vitimou Eduardo Campos é algo que não se deseja a ninguém, nem ao pior dos seres humanos. Brincadeira ou não, é estúpida; é possível se fazer graça sem cair no mau gosto. O que eu sempre me pergunto, quando me deparo com gente que brinca com o sofrimento alheio, é o seguinte: se um dos corpos encontrados no local do acidente fosse o de alguém de sua família e os internautas desrespeitassem seu luto e sua dor, postando supostas “brincadeirinhas” fazendo referência à tragédia, como se sentiriam? Decerto não ficariam felizes, e isso eu aposto.
      Enfim, para evitar maiores delongas, não me debruçarei sobre outros casos, como o da torcedora do Grêmio que chamou um goleiro de “macaco” durante uma partida de futebol há poucos dias. Os que apresentei são só exemplos de fatos repugnantes que me fizeram pensar em tudo isso, no quanto a maldade tem marcado presença nesses meios e se camuflado como sinônimo de graça e senso de humor. As pessoas se aproveitam do conforto de estarem distantes, recolhidas em seus lares e atrás de uma telinha para falar o que querem sem se preocupar com as consequências. Casos de meras ofensas a crimes motivados por racismo, machismo, homofobia e outras formas de preconceito se multiplicam a cada dia. Que não fiquem impunes, e que sobre eles recaia o devido rigor penal.
      Eis então meu apelo: não compactuem com tanta crueldade! Não disseminem o ódio, tomando cuidado com o chamado “humor negro”, consubstanciado geralmente em tentativas estúpidas de fazer graça à custa do sofrimento alheio.; não difundam o Mal, afinal, o exército da maldade aparentemente se torna mais numeroso a cada dia. Em vez disso, esclareçam as pessoas com quem convivem para que promovam o Bem na medida de suas possibilidades; transmitam exemplos de amor aos seus pais, filhos, irmãos, amigos... isso proporciona o travesseiro mais macio de que podemos dispor: uma consciência limpa.
      Por fim, peço que contribuam, então, para que não se produza mais de toda essa sujeira que está nos infectando aos poucos, e também para que ela não seja varrida para debaixo do tapete da hipocrisia. Em esforços conjuntos, a gente pode reciclá-la... e deve, porque, convenhamos: o tapete já não dá mais conta de esconder tanta porcariada.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A Criatura (im)Perfeita


"Tudo evolui; não há realidades eternas, tal como não há verdades absolutas".
  - Friedrich Nietzsche em "Humano, Demasiadamente Humano".

 

"Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito".
- Fernando Pessoa.




       


      Não esperem que eu seja um anjo, nem me demonizem. Não pressuponham que eu vá compreender e aceitar tudo, tampouco tenham medo que eu seja tirânico e que faça julgamentos precipitados.  Não me subestimem, nem superestimem – não sou perfeito, mas também acerto muito na vida. Escrevo certo por linhas tortas, sem pressa, mas fazendo novidade a cada segundo. Aprendo e ensino dia a dia. Suscito a dúvida e encontro a resposta; tenho em mim o grito inaudível e o silêncio ensurdecedor.       
      Não queiram que eu me emocione, me apaixone, ame ou demonstre sentimentos facilmente, nem se surpreendam com minhas explosões de emoção inesperadas, evidentes em lágrimas, sorrisos, gargalhadas, olhares, arrepios, etc. Não esperem nada de mim; ao mesmo tempo, estejam preparados para tudo. Faço rir e chorar, acalmo e irrito. Levo a tempestade e a bonança por onde passo; tenho em mim a paz e a guerra.      
      Eu não sou um robô programado. Eu sou humano. Faço questão de ressaltar isso, com orgulho e fascínio. 
E o que sou, como sou, também depende dos outros humanos que vivem por perto. Para cada um deles, sou de um jeito, sei disso. Bom ou mau, racional ou sentimental, inocente ou malicioso, doce ou amargo, carente ou independente, esperto ou tolo, maduro ou infantil, puro ou pervertido, previsível ou surpreendente, feliz ou triste, sensato ou insano, sensível ou frio, simpático ou chato, frágil ou forte, herói ou vilão... nada disso é bem delimitado na personalidade de quem é realmente humano. Sou tudo, e sou nada também. Tenho em mim toda a essência humana.


“Humano”. Quer palavra que englobe em si mesma mais contradição e mistério do que essa?! 


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Um Sonho Banhado em Sangue


"Acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver

meu sonho virar pesadelo".
                                         - Paulo Leminski


     Tínhamos, desde o início, a íntima sensação de que dentre as paredes de algum majestoso castelo do mundo estariam delineados os contornos do nosso futuro. Futuro certo, prometido e guardado por toda e qualquer força superior que nos rege. Tempo, Destino e o próprio Universo - todas as divindades que, de acordo com seus desígnios incontestáveis, movem as peças do grande tabuleiro da Vida e reconhecem, acompanham e abençoam os sentimentos sinceros entre os mortais -  pareciam conspirar a nosso favor. E o velho castelo, mesmo marcado pelo abandono e pela aura soturna típica dos tempos e propósitos para os quais fora erigido, seria iluminado por arte. Arte em cores e em palavras.
     Chamou-me justamente de mago das palavras quando me conheceu mais a fundo. Aprecio e exploro ao máximo as infinitas possibilidades que estas me permitem; regozijo-me ao experimentá-las das mais variadas maneiras, atribuindo distintas cargas semânticas e operando, assim, a verdadeira magia. Magia que tudo pode, feitiço poderoso tal qual o doce e magnético canto entoado pelas sereias de beleza exuberante. Um som aparentemente inofensivo, mas que pode levar os navegantes mais incautos a serem tragados para a morte certeira nas profundezas do oceano.
   
     Palavras podem conduzir ao fundo do oceano da alma, sabe-se disso. Tencionei que mergulhasse em minhas águas de braços abertos, sem qualquer ressalva ou proteção. Que deixasse que minhas ondas, mesmo intensas, lhe conduzissem em segurança a algum paraíso virgem, sem temer.
      Num belo dia, propusemo-nos a buscar o nosso castelo, juntos numa grande jornada. Enfrentamos incontáveis dragões pelo caminho, com força física, arte, magia... com sentimento concreto. Cada um à sua maneira, cada um com seus métodos; o importante é que reduzimos temporariamente os obstáculos que se apresentavam à insignificância, frente a tudo que o nosso peito transbordava.
      Encontramos, exaustos e depois de muitas montanhas, um castelo imponente, sob um céu cravejado pelas mais cintilantes estrelas. O nosso castelo estava ali, diante dos nossos olhos incrédulos. Da boca, nenhuma palavra. Mais tarde viriam sorrisos, mas naquele momento a surpresa era tamanha que o tempo parecia ter estagnado. Pareceríamos congelados, não fosse o movimento dos nossos cabelos acariciados pelos fortes ventos que dançavam no entorno. Mas voltamos a andar; precisávamos entrar e tomar posse do nosso sonho.
    Diante do grande portão, entreguei-me ao cansaço e à sensação de esforço recompensado; solucei, sucumbi - fui ao chão e, já de joelhos, minhas lágrimas encharcavam a terra. Em silêncio, com paciência e cuidado, deu-me as mãos para que me reerguesse. O portão desceu automaticamente, como se a força da nossa vontade o tivesse operado. Entramos, de peitos abertos para o inusitado.
     No interior, escur
idão total. O cheiro de perigo era forte. Voltei então a cabeça para cima e me assustei com o que vi. Próximo ao que provavelmente era o teto do castelo, havia pontos amarelos cintilantes, que piscavam e se encontravam aos pares. Não eram estrelas; pareciam olhos. Nesse instante, os candelabros do grande salão de entrada se acenderam, também automaticamente. E do teto saíram centenas de morcegos, que alçaram voo, passaram sobre nossas cabeças e rumaram sabe-se lá para onde. Nas mesmas vigas de madeira das quais partiram, entretanto, ainda se encontravam outros seres, também de cabeça para baixo, e cujos olhos continuavam a nos fitar.
     O olhar penetrante vinha de vampiros, cujos braços fechados seguravam grandes capas negras, como verdadeiras asas de morcego. Dei um passo para trás, tentei recuar, mas você me segurou vigorosamente pelo braço esquerdo. E o portão se fechou logo atrás de nós. Curiosidade e aflição começaram a me consumir.
      Inesperadamente, uma linda valsa começou a tocar no interior da velha construção: era a Segunda Valsa de Shostakovich, uma das minhas preferidas. O som me inebriava, como um canto de sereia. Não consegui perceber que àquela altura quem estava mergulhando para a morte era eu. Os vampiros desceram do teto e, ao tocarem o piso do salão, posicionaram-se aos pares e começaram a valsar à nossa volta. E você, percebendo que eu me encontrava hipnotizado demais para pensar em fugir, soltou-me o braço e me pegou gentilmente pela mão. Ainda sem entender o que se passava, mas extasiado com a situação, olhei para seu rosto, e só então pude perceber as presas proeminentes e afiadas em sua boca. Presas vampirescas, como a dos demais. Mas não me espantei, tampouco quis fugir; sabia que não conseguiria. A música, o cenário e o seu olhar haviam me possuído.
      Levou-me carinhosamente para o centro do salão e começamos a valsar. Meu pescoço à mostra prendia toda a sua atenção; seu único desejo era perfurar-me a carne, sugar toda a minha essência e me levar para as trevas. E, no exato instante em que avançaria sobre ele e se saciaria com cada gota do meu sangue, ouvi o canto de um pássaro, que interrompeu definitivamente o momento.
      Abri meus olhos; estava sonhando. Encontrava-me em casa, na cama, não no castelo. O pássaro que me acordara ainda cantava à minha janela. Você não estava ali. Não estava mais comigo. Arrepiei-me ao me lembrar do sonho. Teria sido um sonho ou um pesadelo? Confuso, me levantei e, ao passar em frente à janela, notei que o pássaro se assustou e voou para longe. Só consegui ver que era de médio porte, e tinha penas intensamente negras e brilhantes. Belas penas. Percebi que uma delas ficou no parapeito da janela, e a peguei com cautela.
     Uma linda pena, misteriosamente atraente. Notei que de sua ponta saía um líquido vermelho e tive a imediata ideia de verificar se era possível escrever com ela, utilizando-a como uma elegante caneta. Peguei então uma folha de papel em branco e me pus a esfregar a ponta sobre ela, constatando que o líquido vermelho era suficiente para delinear perfeitamente as palavras. E escrevi sobre o meu sonho, para que não me esquecesse dele.     
     Só ao fim, quando todas as palavras que aqui se encontram estiverem expressas e eu colocar o último ponto final, perceberei o cheiro de sangue que emana do papel. Nada de tinta, nada de grafite, tampouco de aquarela: era sangue que escorria da pena, e com ele todas estas palavras foram grafadas. Nosso sonho agora tem o cheiro inconfundível do líquido vermelho que circula em nossas veias.
     E em algum plano paralelo, sei que nosso castelo ruiu instantaneamente, levantando uma imensa nuvem de poeira, visível a grandes distâncias.