"Outrora, a velhice era uma dignidade; hoje, ela é um peso".
- François Chateaubriand
Havia acabado
de receber alta do hospital. Chegou à recepção marchando a passos lentos em
virtude do recente mal estar, conduzida por um médico deveras jovem e
simpático. Ansiosíssima por rever sua querida família, não conteve o sorriso
largo ao encontrar o marido Leônidas acompanhado de seus maiores tesouros: Bianca,
Dalva e Inácio. Este ainda se encontrava no colo do pai, mas as meninas já
frequentavam os primeiros anos da escolinha.
Ela se
considerava uma mulher realmente feliz; fora profundamente apaixonada por
Leônidas Magalhães, um vereador aclamado pelo povo da cidade, digno e honesto,
com quem conseguira se casar numa cerimônia inesquecível. Todo aquele ardor
inicial da paixão tórrida havia amenizado, à medida que as coisas se assentavam
e seus sentimentos se cristalizavam num amor calmo, recíproco e, sobretudo,
verdadeiro. Efeito previsível de vários anos de companheirismo. Da união
nasceram os três herdeiros, e ambos os pais dedicavam seus esforços para que as
crianças tivessem um futuro promissor ou, no mínimo, confortável. O marido há
muito degustava do prestígio de sua carreira política cada vez mais bem sucedida;
ela era escrivã no fórum da cidade, e também estava muito satisfeita com seu
trabalho. A vida lhe havia sido deveras generosa, não poderia negar.
A família
vivia em uma casa grande, decorada com extremo bom gosto. O quintal era vasto,
cenário de brincadeiras, gargalhadas, tombos e traquinagens dos filhos. Os
empregados eram leais, sempre muito bem tratados. Leônidas, a despeito da
correria de sua vida política, nunca deixou de ser atencioso, carinhoso e
presente em todos os assuntos relacionados à vida doméstica. Grande homem!
Os anos se
passaram, no entanto, e o destino da família Magalhães se desenrolou de forma
imprevista. Inácio, Dalva e Bianca já não se encontravam mais na mansão. Eram
adultos muito ocupados! Cada qual havia seguido o seu próprio caminho,
constituído família e o trabalho lhes consumia. As visitas aos pais se tornaram
cada vez menos frequentes, até se restringirem ao Natal e à apresentação dos
netos recém-nascidos aos avós, breves momentos de raras alegrias.
Os três filhos
moravam em outras cidades e pareciam não muito dispostos a enfrentar as
distâncias para rever Leônidas e a esposa. Estes, agora idosos e aposentados,
sentiam muita falta dos jovens pela casa. Notavam com profundo pesar que os
três estavam cada vez mais distantes mas mantinham-se firmes, porque, embora
não pudessem mais contar com os filhos, ainda tinham um ao outro. Falavam sobre
as “crianças” ao se deitarem, todos os dias, consolando-se mutuamente. Era como
se um abismo lhes separassem dos herdeiros. Numa manhã calma de sábado, porém,
Leônidas não abriu os olhos. Não atendeu aos chamados da amada, sucedidos de
gritos desesperados e interrompidos apenas pelos soluços em meio a um pranto de
profunda dor. A dor da perda, sabemos, é deveras lancinante. Ela agora era uma
viúva. Era, sobretudo, uma senhora solitária.
Os filhos
compareceram ao velório. Abraçaram a mãe, inconsolável. Mal sabiam o que dizer
para confortá-la. Nada do que dissessem devolveria a felicidade àquela senhora
desolada. Dalva sequer ficou para o enterro; desculpou-se e partiu com o marido
sabe-se lá para onde. Inácio, o caçula, sentia remorso ao vê-la tão triste, mas
não pretendia largar a sua carreira para cuidar da mãe. Providenciara de
imediato a contratação de Suzana, uma cuidadora de idosos experiente e gentil
que se mudaria para a mansão e ficaria incumbida de acompanhar os passos da
viúva.
Findo o
enterro, Bianca também partiu. Depois que os presentes se dispersaram e a mãe
prestou sua última homenagem junto ao túmulo do finado marido, Inácio a colocou
em seu carro e rumaram para a mansão. Certificando-se de que Suzana já se
encontrava em serviço, despediu-se da mãe, ainda abatida, deixando-a na
companhia da cuidadora. Como não havia mais alguém a quem se dirigir, a triste
senhora confidenciou a Suzana que nunca mais conseguiria chorar. Segundo ela,
acompanhar o enterro do marido fez com que despejasse todas as lágrimas que armazenava no corpo; sabia que elas haviam secado, tal qual a felicidade que outrora
habitara seu coração.
O tempo passou
e a senhora Magalhães começou a se esquecer de coisas simples do cotidiano. A
perda de memória progressiva chamou a atenção de Suzana quando, além de
raramente se recordar do nome da cuidadora, a viúva solitária esqueceu um bolo
no forno. As torneiras das pias estavam sempre abertas, ela perdia as chaves
pela mansão e chegou ao ponto de ameaçar ligar para a polícia, por não
reconhecer Suzana em sua casa e pensar tratar-se de uma invasora. Em poucos
meses ela seria diagnosticada com Alzheimer.
“Essa doença é
uma praga”, dizia ela a Suzana. Queixava-se que a vida já lhe havia tirado o
marido e as alegrias, e que agora nem mesmo as boas recordações de seus anos
felizes permaneceriam para lhe consolar. Como os filhos, que se foram pouco a
pouco, a própria memória a abandonaria. Sozinha, naquela casa enorme, que
parecia a cada dia mais escura e fria. Suzana era uma boa profissional, mas
optava por não criar vínculos afetivos com os idosos sob seus cuidados.
Preferia não se apegar para não se sentir responsável por eles. Dessa forma,
ouvia atenciosamente a patroa, mas não era dada a demonstrações efusivas de
afeto. E era exatamente disso que a senhora Magalhães mais carecia.
A viúva de
Leônidas anotava num pequeno caderno tudo o que vivia diariamente, para que
pudesse ler e relembrar tempos depois. No entanto, as palavras também começavam
a fugir de sua mente, pouco a pouco. Num futuro não muito distante não seria
capaz de ler os registros. Esquecia-se com frequência dos termos mais precisos
para expressar o que desejava e ficava ansiosa ao tentar encontrar algum
substituto para conseguir se comunicar. Não tinha coragem de tirar a própria
vida, mas rogou aos céus por diversas vezes para que a sua existência fosse
abreviada o quanto antes. Sentia-se tragada pelo abismo do esquecimento, que
parecia não ter fim. Acreditava que, quando seu coração parasse de bater nesse
corpo de matéria, em algum lugar ela se encontraria com Leônidas. Aliás, a figura
do marido resistiu até o fim: foi uma das últimas lembranças a se apagar.
Os filhos
também seriam esquecidos; afinal, muito antes se esqueceram da mãe. Não sabia
mais o que era o amor; há muito não vivenciava o prazer inenarrável de tal sentimento. Apagou-se
de sua memória a sensação, antes mesmo que a própria palavra fugisse do seu
vocabulário cada vez mais reduzido. Sentia-se inútil, invisível,
insignificante. Seu olhar era um convite à tristeza. Em seus últimos dias, no
entanto, ela parecia serena. Arriscava um sorriso cansado em alguns momentos em
que Suzana a levava para tomar sol, e só. Não conseguia mais falar. Com tantas
palavras disponíveis, sua linguagem se resumia a sons sem sentido. Não sabia
mais o próprio nome. Sim, caro leitor, esta mulher tinha um nome: Madalena
Soares Magalhães. Mas de que importa o seu nome, se nem a sua pessoa era
lembrada? Madalena abandonaria a vida convicta, porque fora abandonada.
Alcançaria, enfim, o fundo daquele abismo.
Adoro seus textos!!! Lindo...
ResponderExcluirOi Matheus! Já fico muito feliz sabendo que você costuma ler, e ainda mais radiante por perceber que você aprecia e por ter encontrado esse comentário tão agradável. Muito obrigado e volte sempre! ^.^
ExcluirAdorei o texto Alexandre, parabéns!!!
ResponderExcluirQue coisa boa abrir aqui e ler um comentário de incentivo! Muito obrigado pela atenção, Flávio! (:
ExcluirSaber concatenar palavras de modo a prender o leitor ainda que o conto seja triste é uma arte.
ResponderExcluirMas que honra ter o comentário de um Mestre aqui! Muito obrigado Alex, fico lisonjeado! Creio que você também domine essa arte, e estou ansioso pelo lançamento do seu livro aqui na cidade. Quero muito conhecer mais da sua escrita (:
ExcluirSou suspeito para falar, mas este texto, para mim, foi o mais tocante... Me emocionei com o enredo. Fico imaginando as várias vidas que passam desta forma e me coloco no lugar delas... Será que também passarei minha velhice assim? Sua boa escrita e cuidado em tratar de um tema tão delicado de uma forma tão singela, fez com que esse texto se sobressaísse e me cativasse de uma forma muito boa! Obrigado por partilhar conosco seus pensamentos e reflexões! ;)
ResponderExcluirÉ uma narrativa triste e bela ao mesmo tempo, né? Tem uma dose de poesia, mas é baseada em uma história real. Não é à toa que dizem que "a Arte imita a Vida". Há muita poesia em nossos dias, inclusive nos momentos tristes, que podem ser também inspiradores. Eu que agradeço pela generosidade típica das suas palavras e desejo que sua velhice seja serena e realmente feliz. Ninguém merece a solidão, muito menos uma boa alma com você. Obrigado!
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