terça-feira, 23 de abril de 2013

Luzia Reluzia





"Gente é pra brilhar,
Não pra morrer de fome"
                                         - Caetano Veloso




     Quando Luzia nasceu, acendeu os sorrisos amarelos da mãe e dos sete irmãozinhos. Estes, de início, não disfarçaram a curiosidade: olhos arregalados, pela fome e pela novidade. Eram sete no momento; outros vieram, mas se foram ainda pequenos. Aquele novo corpo franzino parecia irradiar esperança aos quatro cantos da velha casa de barro e coberta de sapê. Ao sorrir para a filha, o rosto da mãe ficava cheio de rugas, de rachaduras, tal qual o chão árido do vasto sertão em que se fixaram. Efeito de anos sob o sol escaldante. O brilho de seus olhos refletia agora um novo brilho, o trazido por Luzia.
      A garotinha foi crescendo e as dificuldades da família, aumentando. Antes se contentava com o escasso leite que encontrava nos seios da mãe, mas agora sua barriga pedia audivelmente por mais. Era uma nova boca para alimentar, embora não menos importante aos olhos dos pais por conta disso. A luz de Luzia parecia esvair-se lentamente.
      No dia em que Luzia completou cinco anos não houve festa, não houve bolo, parabéns, nada disso. Nem ela sabia que era seu aniversário, porque as memórias felizes se perdiam com o tempo naquele lugar. E não havia o que comemorar, já que o pai encontrou uma de suas últimas vacas caída. A coitada não sobreviveu à severidade da seca, e seus ossos estavam tão proeminentes que pareciam querer perfurar o couro, libertar-se daquele corpo castigado.
      O pai tinha tanto amor por suas vacas quanto pelos próprios filhos, e ficava temporariamente inconsolável a cada perda. Mas o luto durava cada vez menos, já que a morte aos poucos se tornava um hábito, uma realidade à que a família já estava se acostumando. A chuva, ao contrário, não visitava aquela região há muito tempo. Naquele dia, a mãe cozinhou os restos da vaca e todos comeram, inclusive o pai, porque a fome falava mais alto. Depois de aliviar a fome, Luzia dormiu.
      Na manhã seguinte, Luzia acordou cedo e foi buscar água com a família. Sabia que suas pernas finas tinham que aguentar uma longa caminhada. E assim foram, figuras cambaleantes e descalças, cada um com o seu balde. Depois de muito andar, encontraram uma água barrenta, resto de um pequeno poço prestes a secar. Era essa água que serviria para matar a sede da família e para cozinhar, quando houvesse o que preenchesse as panelas. Às vezes havia: um pacote de feijão de alguém que por ali passasse, principalmente em época de mudanças no governo. Nessa época, a família recebia muitas visitas ilustres. As crianças ganhavam presentes e roupas, os pais ganhavam comida. Luzia adorava quando era tempo de visita das autoridades. O que ela não entendia é o tamanho enorme da barriga daqueles homens. Sua família dividia as vacas que morriam, mas aqueles homens pareciam comer vacas inteiras!
     Depois de voltarem com a água, a mãe cozinhou palma para eles. É uma planta com espinhos que se acha por lá. A boca de Luzia não gosta muito, mas a barriga adora. Foi o que comeram ao longo do dia. Quando o céu escureceu, Luzia dormiu.
      Na manhã seguinte, Luzia não acordou muito bem. A barriga doía, e não conseguiu conter as lágrimas. Achava curioso ainda ter lágrimas em meio a toda aquela seca.  O olhar da mãe para ela agora era de profunda tristeza. Luzia entendia pouco do mundo, e tinha muita curiosidade a respeito de como é a vida de quem come bem todos os dias. Ela queria poder contar com isso, mas já tinha entendido que não bastava querer. Assim, ao fim de mais um dia, Luzia dormiu.
      Na manhã seguinte, Luzia... não acordou. Sua jornada de raras alegrias estava encerrada e as lágrimas da família encharcaram mais o chão do que qualquer tempestade. Sua luz se apagou, definitivamente. Ou não, talvez esteja ainda mais viva no céu daquele sertão e na mente dos que acreditam, apesar das adversidades.

4 comentários:

  1. "Na manhã seguinte, Luzia... não acordou. Sua jornada de raras alegrias estava encerrada e as lágrimas da família encharcaram mais o chão do que qualquer tempestade. Sua luz se apagou, definitivamente. Ou não, talvez esteja ainda mais viva no céu daquele sertão e na mente dos que acreditam, apesar das adversidades." Texto sensível e sincero. Muito bom.

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    1. Muito obrigado, Eder! Este texto teve uma repercussão muito positiva, fico feliz ao perceber que gostaram. E, como costumo dizer, a sensibilidade também está por trás dos olhos de quem lê. Grato pela atenção e pelo generoso comentário (:

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  2. Dificil algum texto me prender a ponto de não querer mais parar de ler e lamentar porque o texto que hora me entretia e me retirava do meu presente para uma viagem atravez das palavras , terminara!! Voce tem um dom magnífico , não só de nos entreter com seus textos, mas tbém de fazer com que de um simples leitor, passemos a ser protagonistas das suas histórias , como se fossemos transportados para dentro dela. Assim, as lágrimas, não são só da familia da luiza , mas de todos nós que junto com eles, tbém perdemos a Luiza.

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    1. É com muita alegria que agradeço o seu comentário! Sinto-me orgulhoso quando vejo que as pessoas interagem com algum texto, "viajam" nas palavras que proponho. Como comentei, eu mesmo senti um incômodo indescritível enquanto o escrevia; compaixão pela vida severa de Luzia e sua família. A certa altura, quando percebi que não conseguiria dar outro desfecho a ela que não o narrado, me senti realmente mal, pensei em parar de escrever para poupá-la. Mas eu precisava ir até o fim, até para que a história dela servisse de exemplo e alerta para todos nós, sugerindo uma reflexão profunda. Muito obrigado!

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